Conheci pessoalmente Francisco Sá Carneiro nos primeiros dias de Maio de 1974, na Rua Viriato, à porta da SEDES – num momento em que as esperanças sobre o nosso futuro eram ilimitadas. Acompanhá-lo-ia na criação do PPD, tendo colaborado diretamente com ele, em especial no fim de 1975 e início de 1976, como secretário-geral adjunto para as questões da juventude e como membro do Secretariado Nacional.
Com José Pedro Pinto Leite
Tinha seguido com grande interesse e entusiasmo a ação que desenvolveu na Assembleia Nacional na “Ala Liberal”, nos anos do fim do marcelismo, em especial nos domínios da justiça e do sistema prisional, da liberdade religiosa e da revisão constitucional. Depois da morte de José Pedro Pinto Leite, o primeiro líder do grupo dos renovadores, foi em Sá Carneiro que se concentraram as atenções. É certo que João Pedro Miller Guerra tinha um enorme prestígio, mas pelas características pessoais e por uma especial fogosidade, Francisco Sá Carneiro concitava especiais atenções. Isso era especialmente evidente entre os estudantes de Direito, na que tinha sido também a sua Faculdade, e que eu então frequentava. Os seus discursos, claros e corajosos, eram distribuídos, passavam de mão em mão e eram lidos com avidez.
Recordo bem, como se fosse hoje, o dia em que renunciou com estrondo ao lugar de deputado. Ninguém ficou indiferente a esse momento fundamental, em que o antigo regime começou o estertor de morte. Não tenho dúvidas de que então se despoletou o processo inexorável que culminaria nos acontecimentos do 25 de Abril de 1974. Conheço pessoalmente muitos jovens milicianos da altura que nesse dia deixaram de ter dúvidas sobre a necessidade de apoiar um movimento democrático. Se somarmos as renúncias de Francisco Sá Carneiro e de Miller Guerra à publicação do livro “Portugal e o Futuro” do General António Spínola, podemos encontrar fatores convergentes que aceleraram, de modo insofismável, a queda do “Estado Novo” que desde 1958 vinha sofrendo uma aceleração inexorável.
Os acontecimentos históricos têm sempre uma génese complexa. Não podemos esquecer que o arrastamento das guerras de África, que a ausência de soluções políticas para as mesmas e que a tomada de consciência democrática de uma geração de jovens estudantes que foram mobilizados para o Ultramar pesaram decisivamente. Mas houve o pingo‑d’água que transvazou o copo. Francisco Sá Carneiro e a “Ala liberal” tiveram um papel decisivo, que se somou à influência das oposições clássicas e à situação das Forças Armadas. Como no início de 1963 bem viram Mário Soares e Francisco Salgado Zenha, na experiência de “O Tempo e o Modo”, havia que mobilizar os descontentes do regime e a opinião pública representados pelo General Delgado e pelo Bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes, protagonista de um movimento de crescente independência da Igreja Católica em relação ao poder instituído, na linha do que viriam a ser as conclusões do Concílio Vaticano II.
Sá Carneiro confessando-se social-democrata, na célebre entrevista que concedeu a Jaime Gama, jornalista do “República”, representava uma corrente que fazia falta às oposições tradicionais – e que António Sérgio tanto procurou no fim da vida. E esse papel foi revelador da incapacidade de Marcello Caetano para encontrar soluções políticas para o regime. Desempenhou-o Francisco Sá Carneiro, jovem inconformista que fora chamado à primeira linha da ribalta política pela morte prematura de José Pedro Pinto Leite, e o certo é que a sua sensibilidade de jurista experimentado pôs a tónica nas carências do Estado de Direito o que potenciou a sua influência na opinião pública.
Os primeiros meses a seguir a 25 de Abril de 1974 foram de intensa actividade, mas a entrada para o I Governo Provisório, presidido pelo Prof. Adelino da Palma Carlos, e o agravamento de uma doença que vinha atormentando Francisco Sá Carneiro conduziram ao seu progressivo afastamento da vida pública descontente com o curso dos acontecimentos. Só depois do Verão de 1975 voltei ao seu contacto direto para apoiar o seu pleno regresso, por considerar que a institucionalização da democracia necessitaria de um PPD ativo e interveniente no centro da criação do compromisso constitucional que viria ser alcançado logo após os acontecimentos de 25 de Novembro de 1975 na votação da Constituição da República, a 2 de Abril de 1976.
Conversámos longamente em diversas circunstâncias e recordo especialmente o encontro que tivemos em finais de Setembro de 1975 no Grémio Literário, onde me pediu para o apoiar, em especial na organização de iniciativas da JSD. Lembro uma outra conversa, já em 1976, depois da cisão de Aveiro (Dezembro de 1975) em que foi muito claro no sentido de que deveria ser preservada a identidade própria do PPD como partido de orientação social-democrática, no centro‑esquerda, não confundível com o projeto centrista do CDS. Foi nesse tempo que me dediquei a uma acção de intenso estudo e reflexão atualista sobre o programa político de Bad Godesberg (1959) do SPD da República Federal Alemã e sobre a evolução da social-democracia sueca. Com António Rebelo de Sousa, realizei ações de formação de norte a sul do País em torno desses temas, o que culminaria em 1977 com a publicação do livro “Democracia Incompleta”, dado à estampa pela Fundação Social‑Democrata Oliveira Martins. Aliás, foi por iniciativa de Francisco Sá Carneiro e após uma conversa que teve comigo sobre o assunto, que a Fundação do partido foi batizada com o nome de Oliveira Martins, contando com a participação ativa de meu avô Francisco d’Assis.
Importa explicar que o esfriamento das nossas relações deveu-se a uma discordância política. Se não houve dúvidas sobre a estratégia de viabilização da Constituição de 1976, a verdade é que importaria, a meu ver, consolidar o regime democrático com leis estruturais que deveriam ser aprovadas na Assembleia da República com os votos do PS e do PPD, para evitar a tentação de convergências coletivizantes que, nessa altura, apenas poderiam reforçar uma interpretação fechada e estatizante da Lei Fundamental.
Foi essencial a ação parlamentar do PPD no sentido da aprovação de leis estruturantes como a de delimitação de sectores ou as respeitantes às indemnizações, à reforma agrária e ao arrendamento rural. A manutenção do governo minoritário do PS, dirigido por Mário Soares, levou, porém, Francisco Sá Carneiro a mudar de rumo, deixando inesperadamente a direção do partido em finais de 1977, sem uma explicação clara… Estava em causa a necessidade de apresentar uma alternativa contra o que foi designado como o “impasse” e que tinha três vértices fundamentais: clara demarcação em relação à ação do Presidente da República, Ramalho Eanes, cuja eleição o PPD apoiara e que estaria a favorecer objetivamente a eternização do governo minoritário; apresentação da necessidade de um novo texto Constitucional e de um novo sistema político, que, em última análise, deveria ser sujeito a referendo; e fim da colaboração parlamentar com o PS na viabilização das “leis do regime”.
Foram estes os três pomos de discórdia que iriam conduzir, em 1978, ao documento “Opções Inadiáveis”, depois de uma muito fugaz presidência do partido pelo Prof. António Luciano de Sousa Franco, de quem fui chefe de gabinete… O resto da história é bem conhecido… Neste momento, devo salientar que não esqueci as boas relações pessoais que tive sempre com Francisco Sá Carneiro, em quem admirei as qualidades de lutador pelos valores da liberdade e da dignidade de pessoa humana e de político voluntarioso e determinado. Foram razões políticas que me levaram a sair do PSD a 4 de Abril de 1979, continuando a respeitar as qualidades e a ação de quem teve um papel fundamental na institucionalização da democracia portuguesa. Foi, por isso, com um grande choque que recebi a notícia trágica da sua morte. Foi uma perda irreparável para a nossa democracia.