Noite de sexta-feira em casa dos Cavacos: pizza e filme. Sou eu a escolher e não desperdicei a oportunidade quando vi o DVD na Biblioteca Municipal de Oeiras: “Misery” do Rob Reiner a partir do livro do Stephen King, com a Kathy Bates naquele papelão inesquecível a infernizar a vida do James Caan. Tentei convencer os miúdos de que era um filmaço lembrando-lhes a linha da canção “RoboCop” do Kanye West: “You’re like the girl from Misery”. Eles não me pareceram completamente convencidos.

Mas não tiveram grande alternativa. “Misery”, goste-se ou não, é um filme inesquecível. E a verdade é que, provavelmente como a maioria, nunca li o Stephen King em papel. Conheço-lhe as histórias dos muitos filmes que fizeram a partir dos livros dele. Nem tudo é do meu agrado, confesso, sobretudo quando guina para o território do monstruoso. Mas neste caso, quando a Kathy Bates encarna a Annie Wilkes, o monstro é credível e irrepreensível: a fã feita fatal.

Certamente o Stephen King não estava a pensar em teologia quando inventou a história do escritor Paul Sheldon atormentado pela fã que primeiro lhe salva a vida para depois quase acabar com ela. Aliás, não é por acaso que a Annie Wilkes revela traços caricaturais da América mais santarrona e moralista—afinal, o King gosta de bater em religiosos. Mas isso não impede que haja uma moral bíblica a atravessar todo o enredo. E essa moral é: qualquer adoração errada termina num fanatismo mortal.

Quanto menos adoradores somos, mais fãs nos tornamos. Mas uma coisa não é a outra. O fã receia o piso da adoração e fica na versão mais acessível e barata. O ponto cardeal do fã é humano, quando o do adorador era divino. Como todas as pessoas são imperfeitas, por incrível que possa ser quem suscita admiração nos fãs, vai acabar por desapontá-las. E o fã terá de suportar as agruras suscitadas pelo pobre substituto que arranjou para Deus. Facilmente o fã se tornará fatal.

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Annie Wilkes não suportou que o seu escritor idolatrado matasse a sua personagem preferida. Nesse sentido, a fã obrigou o seu ídolo a fazer-lhe a vontade, reescrevendo o livro que ela desejava ler. O que não é um ídolo, afinal, se não um deus obrigado a fazer o que eu quero? Sabemos que estamos na presença do Deus verdadeiro quando ele não me faz as vontades. Só os ídolos têm de viver de acordo com as expectativas dos fãs—Deus está livre para dar cabo delas.

Nasce daqui uma dupla ironia: o ídolo falha ao fã porque não tem a perfeição de Deus, e o fã falha ao ídolo porque não pratica a virtude da adoração. É, como os miúdos dizem agora no inglês original, uma lose-lose situation. Paul Sheldon falhou a Annie Wilkes e Annie Wilkes falha a Paul Sheldon. É uma tragédia pegada. “Misery” é uma parábola espiritual do nosso tempo porque nos faz ver os fãs ridículos que somos e nos faz ver os ídolos ridículos que queremos ser.

Hoje facilmente somos fãs de alguma coisa porque nos esquecemos que tão grave como adorar um deus errado, é adorar o certo da maneira errada. Media is the message, uma vez mais lembraria o bom Marshall Macluhan. Adoramos falsos deuses e adoramos o certo falsamente. Vivemos numa época de fãs porque partimos do princípio que ser devoto ao que enche o nosso coração chega. Qualquer paixão nos coloca de joelhos. E qualquer vontade não atendida nos tornará fatais para quem acabámos de idolatrar. A verdadeira miséria é que Annie Wilkes somos todos.

P.S. Numa semana implacavelmente obrigada a acumular equívocos religiosos, escolho um aqui no nosso próprio Observador. Num texto sobre um obscuro concerto que juntou católicos e evangélicos no Estádio da Luz, a pérola brilha: “Nem todas as igrejas evangélicas reconhecem a figura do Papa”. Quando a jornalista descobrir uma que o faça, aconselho: dê a notícia que aqui claramente lhe passou ao lado.