Em 17 de dezembro de 1961, um incêndio de origem criminosa destruiu o Gran Circo Norte Americano em Niterói, no Rio de Janeiro, deixando para trás cerca de 500 mortos e inúmeros feridos, maioritariamente crianças, convertendo-se naquela que, ainda hoje, é conhecida como a maior tragédia de sempre ocorrida no meio circense.

O palhaço “Carequinha”, figura inesquecível para milhões de crianças brasileiras ajudou a financiar a construção de um cemitério numa cidade vizinha para acolher os mortos que, tamanho era o seu número, não tinham onde ser sepultados. Passados quarenta e cinco anos, em 2006, «Carequinha» foi enterrado no mesmo cemitério que ajudou a financiar, vestido com o seu fato colorido de palhaço, pois, segundo dizia, queria ir assim para alegrar os mortos.

Em 2011, decorridos 50 anos da tragédia, sobre o local onde se encontrava a picadeiro do malogrado circo, ergue-se a Policlínica Militar de Niterói e é inaugurado um memorial de homenagem às vítimas.

Na inauguração participa Ivo Pitanguy, um dos maiores cirurgiões plásticos brasileiros de sempre, que recorda a comoção e os atos heroicos que encontrou no local, os dramas que seguiram aos primeiros socorros às vítimas e o impacto que tragédia teve sobre a evolução da cirurgia plástica no Brasil, que, perante centenas de vítimas gravemente queimadas, se viu forçada a experimentar e evoluir, adotando práticas pioneiras que puseram o país na vanguarda da cirurgia plástica.

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As estórias relacionadas com a tragédia, recordadas nesse longínquo ano de 2011, foram muitas, mas a maioria já estava há muito esquecida e assim continuam, com exceção, talvez, daquela que relaciona o incêndio no Gran Circo Norte Americano com a vida de José Datrino.

Casado, pai de cinco filhos, dono de uma empresa de transporte de mercadorias, quanto teve conhecimento da tragédia, acorreu ao local e ali permaneceu consolando as vítimas e seus familiares, plantando um jardim sobre os destroços do circo.

Não mais voltou à vida que tinha, dedicando-se a pregar a sua mensagem, que resumiu em pinturas espalhadas pelos pilares do ”viaduto do gasómetro” no Rio de Janeiro, onde se podia ler que «gentileza gera gentileza».

Passou a ser figura presente nas ruas, sempre com uma palavra amável, pregando o amor e a gratidão, defendendo que a gentileza era o remédio para todos os males e acabou conhecido como “Profeta Gentileza”.

Parece pouco pois o Profeta Gentileza não anunciava o fim do mundo, não inflamava os crentes, não enchia assembleias, não arrastava multidões, não fazia milagres.

Fazer milagres não deve ser fácil, acreditar neles tampouco, mas, à parte de qualquer misticismo ou crença, a mensagem do Profeta Gentileza é de fácil adesão, segui-la não custa quase nada e está ao alcance de todos.

Num mundo cada vez mais focado no digital, o trabalho faz-se remotamente, as amizades se constroem e se mantêm nas redes sociais, casais se conhecem através de aplicativos, as relações terminam por mensagem… Está tudo à distância de um computador ou de um smartphone. As vantagens são inúmeras, mas, como diz o ditado popular, “não há bela sem senão”.

Protegidos por um ecrã, muitos são os que que se isolam ou aqueles que dizem tudo que lhes vai na alma, sem filtros ou limites, e basta percorrer as caixas de comentários a notícias, artigos e quaisquer outras publicações on line para perceber que andam por aí muitas almas a precisar de salvação.

Mas o Profeta Gentileza não prometia nem anunciava a salvação, limitando-se a pregar a gentileza, o simples exercício, por cada um de nós, de pequenos gestos de simpatia, respeito e interesse pelos conhecidos e desconhecidos com que nos vamos cruzando pela vida.

A empatia, a cordialidade e a compaixão são elementares nas relações humanas e o contacto pessoal direto fomenta esses valores, em contraponto com uma sociedade cada vez mais impessoal, em que os problemas de saúde mental se vão avolumando, atrevo-me a dizer, à boleia da solidão, do isolamento e da crescente falta de ligação entre as pessoas.

Quando olho para o passado, recordo as vezes em que a minha mãe ia bater à porta da nossa vizinha para lhe pedir qualquer ingrediente que, à última hora, lhe faltava para terminar o jantar.

Aproveitavam para perguntar como ia a família e como estavam os filhos e para criar aqueles laços que tornam a vida mais alegre e mais fácil. Se hoje, à minha mãe ou à vizinha, lhes faltasse um raminho de salsa para completar a receita, o mais certo seria pedirem um “Glovo”.

Na minha infância não havia smartphones ou tablets e os longos verões em férias eram passados a brincar na rua, a ler revistas aos quadradinhos, a jogar às cartas e ao monopólio…

Bem sei que tudo isto cheira a nostalgia e que, de lá para cá, o mundo mudou. As redes sociais, o teletrabalho, a inteligência artificial, o remoto e o digital são realidades incontornáveis, com inúmeros benefícios de que já não abdicamos. Nada contra, apenas receio que estejamos a ir longe de mais.

Nas redes sociais, muitos são os que expõem a sua vida pessoal e se expressam sobre tudo e mais alguma coisa, sem pudores, sem reservas, sem o cuidado, o bom senso e a civilidade que provavelmente adotariam em contexto presencial.

Há quem diga que os excessos cometidos em comentários e publicações nas redes sociais não são um problema, pois limitam-se a refletir sentimentos que sempre existiram e que apenas estavam escondidos por falta de um canal onde pudessem ser exibidos. Outros afirmam que tais excessos até podem ser positivos pois permitem uma válvula de escape para as frustrações do dia a dia, uma espécie de catarse em forma de post.

Tenho as maiores dúvidas. As pessoas mostram-se menos ponderadas, mais extremadas e agressivas, porque o digital lhes permite tudo dizer, sem ter de olhar nos olhos daqueles a quem dirigem os seus sentimentos menos nobres ou simplesmente a sua falta de gentileza.

E se, como dizia o Profeta, “gentileza gera gentileza”, a recíproca é verdadeira e temo que estejamos a construir um mundo de pessoas cada vez menos afetivas, mais indiferentes, apressadas e distantes, perdendo gradualmente competências sociais e relacionais, as tais soft skills de que tanto se fala.

Esquecemos que o digital tem criado um novo tipo de excluídos, com que ninguém se parece preocupar, aqueles que não têm um smartphone, idade ou competências para este “admirável mundo novo” que acha que tudo deve ser digital, desmaterializado, remoto, com cada um na sua bolha, consumindo conteúdos gerados por algoritmos programados para nos dar sempre mais do mesmo, estreitando a nossa visão do mundo e dos seus matizes.

Penso que, mais cedo ou mais tarde, o recurso ao digital e ao remoto tenderá, como tudo, para o equilíbrio e já se vai assistindo a alguns sinais de que, afinal, não queremos viver tudo através de um ecrã.

Temos, finalmente, a discussão sobre os telemóveis nas escolas, sobre a importância da caligrafia no processo de aprendizagem e até na publicidade, excelente barómetro para tendências, já se fala no atendimento pessoal nos serviços como algo diferenciado e valorizado, pois, recordando um inspirado anúncio publicitário, já começamos a ficar um pouco cansados de falar com as primas todas.

Aqui chegados, reconhecendo a complexidade do tema, o que interessa, saber é que, tanto no registo presencial como no remoto, cada um de nós tem a possibilidade de gerar gentileza, enquanto pais, filhos, familiares, amigos, conhecidos e desconhecidos, mas também como chefes, patrões, empregados ou clientes, pois todos somos muita coisa ao mesmo tempo, competindo-nos aplicar, nas várias dimensões da nossa vida e dos papéis que nela vamos assumindo, os ensinamentos do Profeta Gentileza.

Tal como acontece com o primeiro dia de cada ano, o regresso à rotina após os meses de férias costuma ser aproveitado para dar novo impulso a objetivos e desejos constantemente adiados, muitos destes destinados a melhorar a nossa saúde física e mental.

Com essa oportunidade em vista, não resisto a aproveitar estas linhas para recordar os ensinamentos do Profeta Gentileza e sugerir o regresso da cordialidade e da gentileza como princípio geral no tratamento entre as pessoas, a receita universal de tratar os outros como gostamos de ser tratados, o bom hábito de pensar naquilo que dizemos ou escrevemos antes de o fazer, porque o que fica dito ou escrito não pode ser retirado e, finalmente, uma maior atenção àqueles que nos rodeiam, começando por ouvir mais e falar menos, pois não terá sido por acaso que o Criador nos deu apenas uma boca e dois ouvidos…