Utente – Bom dia, o meu pai tem 100 anos e precisa de ser observado por um médico com urgência. Receio que esteja com uma pneumonia. Está há quatro dias com tosse persistente e expectoração amarelada e tem dores de cabeça e dores musculares. Não tem febre alta, mas ele nunca costuma fazer febre.

Centro de Saúde – Então traga-o ao centro de saúde para ser visto esta tarde nas urgências.

Ut – O meu pai está acamado. O que eu venho pedir é que o médico venha a casa.

CS – Não há consultas urgentes ao domicílio.

Ut – Não estou a perceber….

CS – Os centros de saúde não fazem consultas urgentes ao domicílio. Poderá ir aí um médico quando tiver disponibilidade, mas não sei quando é que isso irá acontecer. Se é urgente chame uma ambulância e vá ao hospital.

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Eu nem estava a acreditar no que tinha acabado de ouvir. Era o próprio sistema de saúde que me estava a encaminhar para as urgências do hospital, sem antes haver uma triagem feita por um médico que poderia resolver a situação sem necessidade de sobrecarregar ainda mais as urgências hospitalares nem submeter o paciente ao risco de apanhar uma bactéria hospitalar e ter que esperar, numa maca, horas para ser atendido.

Ainda incrédula e a pensar que tinha percebido mal a situação procurei esclarecer-me junto de uma amiga que também exerce medicina num centro de saúde e ela confirmou-me que era mesmo assim:

“A nossa agenda não inclui deslocações urgentes ao domicílio. Depende da boa vontade, disponibilidade e bom senso do médico realizar essas consultas: no seu tempo livre, quando sai do trabalho, encaixá-las nas horas de desistência de consultas marcadas, realizar essas consultas à hora do almoço ou combinar com um colega que veja algumas das suas consultas programadas para poder ausentar-se temporariamente”.

É mesmo assim: não existe espaço, na agenda dos médicos de família, para responderem aos pedidos de domicílio urgentes e diários. Não há uma resposta clínica, nos cuidados de saúde primários, para as necessidades dos doentes mais vulneráveis, em situação de dependência e com agravamento do seu estado, nem para utentes em fim de vida ou pessoas autónomas que subitamente adoeçam e não consigam deslocar-se.

Para um melhor funcionamento do SNS (Serviço Nacional de Saúde) é urgente alargar as portas de entrada nos cuidados primários. Faz falta uma reorganização inclusiva que não deixe de fora uma população domiciliada cada vez mais envelhecida, abandonada ao voluntariado dos médicos mais disponíveis ou conscienciosos.

No episódio relatado não me restou alternativa senão recorrer aos serviços de medicina privada. Confirmou-se a pneumonia e o médico receitou um antibiótico.

Os meus pais estiveram vários anos sem médico de família. Em Janeiro essa falha foi colmatada com a atribuição de uma jovem médica, muito simpática. Num dia em que lhe pedi uma consulta ao domicílio respondeu-me que iria na sua hora de almoço. Decorridos dez minutos após o primeiro telefonema voltou a contactar-me a perguntar se a casa era longe. Se dava para ir a pé. Estranhei a pergunta e respondi que a pé ainda iria demorar uma hora… Disse-me então que não poderia ir naquele dia. “Talvez amanhã”. Perguntei o que se tinha passado e ela respondeu que até tinha ao seu dispor um carro do centro de saúde, mas como não sabia conduzir a única possibilidade seria deslocar-se com o motorista, mas este já tinha saído. Então e não pode vir de táxi, perguntei? Respondeu que não, “essa situação não está contemplada no regulamento”. Ficou assim adiada a visita, devido a uma rigidez inflexivel.

Com uma pessoa frágil de 100 anos os episódios repetem-se e pouco tempo depois tivemos mesmo que ir ao hospital (público) pois tudo apontava para uma recaída da pneumonia. A médica que nos atendeu disse-nos que o meu pai precisava de tomar um antibiótico hospitalar e prescreveu o internamento. Eu tinha lido alguma informação sobre hospitalização domiciliária – que já estava a funcionar –, por isso solicitei-a. Não aconteceu, nem sei bem porquê, uma vez que referi ter o apoio permanente de duas cuidadoras (que se revezam) e de um enfermeiro privado que ia casa ver os meus pais todas as semanas, todos os dias se fosse necessário.

Nos últimos meses de vida o meu pai fazia muitas pneumonias por aspiração (engasgava-se e a comida ia para os pulmões) apesar de o enfermeiro o aspirar sempre que era preciso. Investiguei e percebi então o que queriam os médicos dizer quando afirmavam “precisa de um antibiótico hospitalar, vamos interná-lo”. A maior parte das vezes isso significava que precisava de receber o antibiótico por via intravenosa. Posteriormente, quando isso se verificava (mais uma pneumonia confirmada pelo médico privado que se deslocou ao domicílio) houve uma ou duas situações em que consegui na farmácia os antibióticos prescritos e pedi ao enfermeiro que os administrasse por essa via. Numa terceira ocasião não havia o antibiótico em questão à venda na farmácia mas consegui-o por outras vias. E correu tudo bem. Foi tratado em casa, no seu ambiente, na companhia da família, subtraído ao risco de contrair bactérias hospitalares e deixando vaga uma cama para quem mais precisasse. Tenho a vaga sensação de que desta vez fiz algo um pouco clandestino, mas continuo sem perceber porque não averiguam os médicos se o doente tem condições para tomar estes medicamentos em casa em vez de procederem logo ao internamento.

Em relação à enfermagem dos centros de saúde, percebi que eram pontuais nos tratamentos agendados com antecedência, mas que não podíamos contar com eles para responderem a situações imprevistas. Assim aconteceu quando inesperadamente tive que algaliar o meu pai. Fui obrigada a recorrer, uma vez mais, ao sistema privado, pois também neste sector (enfermagem) os cuidados primários não estão organizados para responder às necessidades inadiáveis dos utentes.

É urgente uma reorganização dos centros de saúde que não empurre as situações urgentes para os hospitais, como está a acontecer. Se não forem tidas em conta estas situações emergentes assim como as vulnerabilidades de uma população cada vez mais fragilizada pela longevidade nenhum plano de emergência conseguirá curar as doenças da saúde.