Munch, o célebre autor do quadro O Grito que eternizou a força da sua pintura expressionista, é também autor de vários quadros sobre a morte. Destacam-se três. Na tela A mãe morta e a criança,  sentimo-nos impotentes perante a angústia e o desamparo de uma menina ao lado da mãe, que acabou de se tornar cadáver. A criança que  Munch vai buscar às suas memórias é Sophie, a sua irmã preferida. O pintor  tem 5 anos quando a mãe morre, vítima de tuberculose. A outra pintura,  A morte no quarto da doente,  é uma obra prima do expressionismo. Aqui é a sua irmã Sophie que está no leito de morte, também ela vítima da tuberculose. Tem ele 13 anos. Os rostos dos familiares à volta da cama da doente são extraodinariamente expressivos e é visível a mestria do artista na representação de um espectacular jogo de sombras e luzes. No Cheiro da morte Munch aborda a mesma temática. As pinceladas escuras e nervosas traçam rostos pesarosos e consternados, criando o ambiente sombrio, de luto, num quarto onde se vela um morto.

Estas perdas sucessivas e trágicas da mãe, da irmã e mais tarde do pai que morre de um ataque cardíaco, marcam e formam a personalidade e a obra do pintor norueguês Edvard Munch. Morte, ansiedade, emoções profundas, problemas existenciais são temas recorrentes nos seus trabalhos. Mas o que quero destacar em todas estas obras do século XVIII é o denominador comum: uma pessoa na fase terminal; no seu quarto; na sua cama;  que morre acompanhada dos seus familiares e amigos. Uma realidade muito diferente da actual em que apenas cerca de 30% dos portugueses  têm o privilégio desse aconchego que é morrer em casa.

Portugal, o país onde menos se morre em casa

Segundo um estudo relativamente recente (investigação desenvolvida por uma equipa da Universidade de Coimbra, em colaboração com a Escola Nacional de Saúde Pública divulgada há cerca de um ano) Portugal é um  dos países onde menos se morre em casa, porque há uma cultura “hospitalocêntrica”. Percebe-se: perante a insuficiência de meios humanos e materiais nos cuidados paliativos, o hospital revela-se, em muitos casos, o único recurso de que as famílias dispõem em casos de doença grave e incapacitante em que o doente necessita de cuidados permanentes e coordenados. Mas há mais: ao contrário daqueles países onde a progressão de mortes em casa é ascendente, no nosso país a curva é descendente. Significa que estamos a afastar-nos das boas práticas e do que apontam as recomendações internacionais: descentralizar os cuidados do hospital.

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O diagnóstico e a solução para esta situação são também fornecidos pelo mencionado estudo: “Há um investimento insuficiente nos cuidados paliativos domiciliários. Sabemos que quando existe uma maior disponibilidade para cuidados paliativos domiciliários a percentagem de óbitos ocorridos em casa é maior”.

A corroborar a importância deste apoio está o facto de que ao contrário dos restantes óbitos as mortes por cancro, no domicílio, aumentaram em Portugal “o que pode ser explicado por o cancro ser uma doença de trajectória mais previsível e também com acesso a cuidados paliativos, mais cedo e mais bem integrados”.

Creio, no entanto, que há outros aspectos a considerar para perceber porque é que os óbitos acontecem mais no hospital do que em casa, além da deficiência no apoio dos cuidados  paliativos que é de vital importância.  São elas: a procura de meios extraordinários (equipamentos) que pela sua natureza e elevado custo estão no hospital, para prolongar uma vida que já está na fase terminal; o desenvolvimento da tecnologia associada aos meios de diagnóstico, também ela sediada no hospital; a ausência quase total das visitas domiciliárias de um médico que acompanhe o paciente e a família (nos centros de saúde não existem consultas de urgência ao domicílio; as empresas privadas enviam médios diferentes que não seguem o doente e por isso não inspiram confiança aos familiares).

Eu e a minha família vivenciámos recentemente todas essas situações com o meu pai. Cento e dois anos, doente de Parkinson, apanhado pelo Covid no Verão (Agosto de 2023), apesar de ter todas as vacinas em dia. Os seus órgãos vitais começaram a falhar sucessivamente. Primeiro os pulmões, fustigados com pneumonias sucessivas e outras infecções respiratórias. Depois os rins e teve que ser algaliado. Por ultimo o coração.

Micro Hospital doméstico

Montámos um micro hospital pois era vontade dele e nossa que morresse em casa. Contratámos duas cuidadoras que se revezavam. Quando ficou acamado  recorremos a várias IPSS da área de residência para ajudarem na higiene mas nenhuma estava disponível. Recorremos ao Centro de Saúde para pedir o apoio dos cuidados paliativos – informaram que não havia nenhuma equipa na área. Tivemos então que contratar um enfermeiro para acudir às situações emergentes. E houve também ocasiões em que tivemos que pedir ajuda ao INEM e desesperámos com a demora no atendimento.

No penúltimo internamento a situação era muito grave: não era suficiente o oxigénio que tínhamos requisitado ao domicílio e as pneumonias por aspiração provocadas pela disfagia (dificuldade de deglutição, neste caso de alimentos sólidos e líquidos) exigiam uma aspiração frequente dos pulmões, muito dolorosa para o doente. Fomos chamados para reunir com a equipa dos cuidados paliativos do hospital (público) que nos expôs a situação: o nosso pai e avô tinha que ser ligado a uma sonda nasogástrica (um tubo inserido desde o nariz até ao estômago)  para poder alimentar-se. Pensámos e depois recusámos a solução proposta: já tínhamos a experiência de ele arrancar os fios do oxigénio. Propusemos a PEG (fio ligado directamente ao estômago, vulgo Peg em inglês) mas a equipa recusou alegando que isso exigia uma operação e uma anestesia (em contrapartida, a sonda nasogástrica pode ser colocada apenas por enfermeiros). Nós, que tínhamos decidido não recorrer, quando chegasse a hora, a cuidados extraordinários para prolongar a vida do nosso ente querido, pois considerávamos esses meios supérfluos e pouco dignos, continuámos a insistir. A equipa propôs então outra solução: a nutrição parenteral (NP), um método de alimentação realizado por via intravenosa, (os nutrientes são administrados directamente na veia) como se fosse um soro. Um “soro” que contém aminoácidos, vitaminas, glicose, lípidos…. Ignorávamos que isto fosse possível e aderimos logo à proposta. Pareceu-nos mais razoável e digna embora me preocupasse privar o meu pai de um dos poucos prazeres que ainda lhe restava, o paladar. Mas não havia alternativa. Aliás, esta seria também uma das consequências das sondas alimentares. O médico da equipa avisou-nos que tínhamos de estar preparados para ver o nosso familiar emagrecer e perder forças…E foi aí que perpassou uma dúvida pela minha cabeça e irrompi com a pergunta: ouça, nós não estamos a matar o meu pai devagarinho, pois não? Porque eu não quero eutanasiar o meu pai. Ao que o médico respondeu: não, quando muito o que estamos a fazer é a praticar distanásia.

Eutanásia e Distanásia: a diferença

A distanásia é também conhecida como obstinação terapêutica: é a prática pela qual se prolonga, através de meios artificiais e desproporcionados, a vida de um doente incurável. Nos EUA a expressão usada é futilidades médicas. O Papa João Paulo II nos últimos anos da sua vida foi internado várias vezes devido à sua saúde débil agravada pelo Parkinson. Quando já estava muito mal, a equipa médica do Vaticano propôs-lhe ingressar novamente nos cuidados intensivos da clínica Gemelli. O pontífice recusou. Percebendo que a sua vida estava a chegar ao momento final, pediu simplesmente: “Deixem-me ir para a casa do Pai”. Se o Papa voltasse ao hospital a sua vida certamente poderia ser prolongada por vários dias (distanásia), mas o que beneficiaria? Já não precisava disso. Já tinha sofrido o suficiente para expiar as suas faltas, como era, de certeza, a sua convicção de católico.

Regressámos a casa com a prescrição médica de soro, de oxigénio, de morfina e de analgésicos. O objectivo: manter o doente (meu pai) o mais confortável possível e sem dores. E nunca dar alimentos nem líquidos. Apenas hidratar os lábios com muito pouco líquido. Como não existia unidade de cuidados paliativos residente no centro de saúde da área dos meus pais a equipa mostrou-se disponível para nos dar apoio através do telefone sempre que precisássemos, dentro das horas de expediente.

Em casa foi muito difícil vermos o nosso familiar com os lábios ressequidos e vivenciarmos a sensação da fome que ele teria, sobretudo porque uma ou outra vez, quando lhe perguntámos se tinha fome, ele abanava afirmativamente com a cabeça. Para enganar a sede congelámos lamelas finíssimas de chá com açúcar que derretiam em contacto com os lábios, como nos tinham ensinado. Mesmo assim ele chupou ou nós dispensámos-lhe líquido em excesso e engasgou-se de tal maneira que ao fim de 3 dias em casa tivemos que chamar o INEM. Os técnicos disseram que a situação era muito grave e que tinha que ser aspirado no hospital. E é nesse momento crucial – quando chegámos a casa depois da alta – que eu acredito que se tivéssemos tido a visita diária de um ou dois elementos dos cuidados paliativos esse acompanhamento ter-nos-ia ajudado a lidar melhor com a situação e não teria sido necessário chamar o INEM, nem recorrer uma vez mais à unidade hospitalar. Acredito que nos teriam ajudado a manter a lucidez necessária ao momento e a lidar com a impotência de ver um ente querido a apagar-se aos poucos. Os médicos e enfermeiros tinham-nos dito: ele não vai morrer porque não lhe dão comida. Ele vai morrer porque tem uma doença que o impede de comer. Mas o apelo para lhe matar a fome e a sede era demasiado grande. E as dúvidas sobre a consistência daquele “soro” começaram a avolumar-se. Sim, nesta fase teria sido crucial para o bem-estar do doente e para nós, familiares, ter tido o apoio domiciliário dos cuidados paliativos. O óbito do meu pai teria ingressado na coluna dos doentes que morrem em casa e não, como aconteceu, nas numerosas estatísticas dos doentes que morrem no hospital, confirmando as conclusões do estudo referido anteriormente.

No hospital, após os 3 dias angustiantes que tínhamos passado em casa, voltámos a pedir a sonda gástrica, contra toda a lógica humana e as nossas convicções (não usar meios extraordinários). Durante cinco dias aguardámos que um médico gastroenterologista atravessasse o pátio do hospital para o observar e decidir sobre o nosso pedido, o que não aconteceu. O meu pai morreu ao sexto dia de internamento ligado ao oxigénio, com os pulmões e o coração extenuados e os cuidados médicos necessários para lhe aliviar as dores.

O médico que estava de turno teve a humanidade de nos ligar às 3h da manhã a informar sobre a situação e a autorizar a visita para o acompanharmos nos últimos momentos de vida. A enfermeira e a auxiliar de turno foram muito atenciosas e serviram-nos chá. O capelão do hospital, a meu pedido, tinha-lhe já dado, uns dias antes, a Santa Unção dos enfermos e o meu pai já se tinha confessado há uns meses.

Permanece como um grande desafio integrar na nossa vida a sabedoria da dimensão da finitude e da mortalidade, sem apressar a morte (eutanásia), sem a prolongar com tratamentos inúteis (distanásia), suspendendo, inclusive, o esforço terapêutico para prolongar a vida de doentes terminais sem hipótese de cura.

Todas estas possibilidades precisam do apoio dos cuidados paliativos. À família e ao doente. Deixo aqui o meu testemunho como forte prova disso. Com todas as solicitações e insuficiências que existem no sector da saúde é importante priorizar o crescimento destes recursos para assegurar o apoio clínico e espiritual à família e ao doente.

Uma morte digna é aquela que acontece no momento certo. Quando tem que ser. Sem ser precipitada. Sem ser arrastada por familiares nervosos.

Com todas as possibilidades de alívio da dor que a medicina oferece porquê pensar em abreviar a vida com o suicídio medicamente assistido ou com a eutanásia (contraria à prática médica)? Será ignorância? Ou será a teimosia de uma ideologia que quer deixar a sua assinatura bem marcada numa sociedade?

Devemos usar os recursos escassos de que dispomos ao serviço do Bem Comum edificando uma sociedade evoluída que cuida com dignidade dos cidadãos até ao seu último suspiro. Assim como os humanos são cuidados ao nascer, devem também ser cuidados no final de vida.