O empoderamento é uma estratégia que, em teoria, é bem conhecida mas que raramente é colocada em prática. Porquê? A educação está demasiado formatada por representações assentes nos nossos próprios percursos académicos. Todos os meus professores, mesmo aqueles que hoje são uma referência, limitavam-se a seguir os guiões das suas disciplinas.
Hoje, felizmente, já existem alguns professores que contrariam a tendência de um ensino expositivo, compartimentado em “gavetas”. São professores que usam a curiosidade natural dos alunos e os seus interesses para realizarem aprendizagens significativas.
A primeira vez que assisti a um exemplo de empowerment foi na Casa da Música (em inglês). Nessa altura encontrava-me a lecionar na Cercigaia e fomos convidados para participar num espetáculo encenado pelo Tim Yealland. Selecionámos uns quantos jovens e arrancámos rumo à Casa curiosos para saber como é que os “bifes” iriam fazer uma peça com pessoas que tinham dificuldade em memorizar, em falar, em mexer-se num palco…
Após uma breve apresentação e sem perder muito tempo, o Tim explicou que pretendia abrir o espetáculo com um personagem a empurrar um armário com rodas até à boca de cena; chegado aqui, o ator iria proferir algumas palavras da sua própria autoria. Perguntou aos jovens quem queria assumir este papel e um deles levantou-se imediatamente. Eu deitei as mãos à cabeça e pensei: “Meu Deus, está tudo perdido”.
O jovem avança para o palco, empurra o armário e quando para diz: “Grooofchelofffsddurerrttrimspsstidocjgdslgfwl….” Não, o ator não era estrangeiro, o ator não conseguia falar e simplesmente emitia sons que ninguém conseguia descodificar, mas fê-lo com tanta expressividade que todos nós, com os olhos a reluzir, nos levantamos e aplaudimos euforicamente. Tudo mudou, a partir do momento em que os jovens sentiram que estavam a ser ouvidos e que o que diziam tinha importância na construção de um guião para um espetáculo que iria ser apresentado no palco 2 da Casa da Música.
Toda a peça foi construída neste modelo: o Tim perguntava às pessoas o que queriam fazer e por mais disparatada que fosse a ideia, conseguia encaixá-la sempre no guião e fazer disso um momento único. Apesar das barreiras, todos os nossos atores sabiam quando tinham que entrar em cena e o que fazer porque foram eles que decidiram, porque o Tim reconheceu a importância que cada um tinha.
Acabado este projeto, regressei à instituição convencido que era tão bom ou melhor do que os ingleses; afinal de contas conhecia bem os meus jovens e até falava a mesma língua, não tinha nada que enganar. Bem… foi fracasso atrás de fracasso. Sempre que os planos falhavam, a minha tendência era regressar aos modelos tradicionais e à imagem que eu tinha dos excelentes professores que me acompanharam. Aos poucos, fui abandonando a pedagogia tradicional e comecei a dar importância às pessoas, ao que elas queriam aprender e o que tinham para me ensinar.
Foi curioso porque, posteriormente, criámos uma banda que se chamava “Mente Aberta”. Em certas alturas tocávamos para toda a instituição e por vezes passávamos o micro ao público que cantarolava os refrões das nossas músicas. Um dos jovens que estendia sempre a mão para lhe darem o micro também não falava e eu fazia de conta que não o via pensando que o iria expor ao ridículo perante os colegas se o deixasse cantar. Um dia lembrei-me do Tim e resolvi arriscar. Passei-lhe o micro e o Carlos passou a ser vocalista da banda. Tinha uma voz rouca, muito idêntica à do Tom Waits. Acho que só a partir desse dia é que os “Mente Aberta” passaram a fazer sentido.
Quando cheguei à Escola Básica e Secundária de Canelas (fresquinho), atribuíram-me os alunos mais velhos e problemáticos (a “gunada”). A primeira coisa que fizemos em equipa foi acabar com qualquer vestígio de pedagogia infantilizada que existia na sala. Apagámos tudo o que era representação de insucesso para aqueles jovens. Criámos “Uma Banda Sem Nome (Ainda)” que musicava poemas de Fernando Pessoa, passámos a participar em todos os eventos culturais da escola, começámos a tratar dos jardins, a restaurar motas… e de um momento para o outro a “gunada” desapareceu e brotaram os jovens que passaram a ser reconhecidos pela comunidade. As aquisições académicas passaram a ter mais resultados, porque simplesmente passaram a ser ouvidos no seu próprio processo de aprendizagem e a atribuir valor ao que necessitavam de aprender para atingir os seus próprios objetivos. Foi este o fenómeno tão simples que deu origem ao projeto “Sim, Somos Capazes”.
Os primeiros passos do projeto nascem do sonho de um dos jovens. O Pedro queria ser pasteleiro; hoje faz bolos que serve no SIM Café. Temos uma lavandaria, hortas, estufas, galinheiros, fazemos restauros, pintamos paredes, lavamos carros e até criamos um protótipo de uma cargobike para desenvolver um conceito de street food. No fundo, gerámos um leque de cenários onde os jovens alimentam os seus sonhos e desenvolvem as competências para os colocar em prática. Sim, não chega ter sonhos, é necessário saber o que temos que fazer para os atingir.
Quase todos nós pensamos que os teclados têm a distribuição das teclas estruturada por uma lógica ergonómica dos movimentos dos dedos. A realidade é que esta distribuição é uma herança das antigas máquinas de escrever. As teclas eram dispostas assim para que as hastes metálicas que imprimem o caracter não encravassem com tanta frequência. Hoje, com as novas tecnologias, isso não representa um problema e poderíamos fazer uma redistribuição dos caracteres do teclado seguindo outra lógica. No entanto, nenhuma marca o faz porque estamos demasiado agarrados ao convencional.
Com as letras dos teclados consigo eu viver bem. Com a falta de flexibilidade na educação e com a desculpa de que são os alunos que se devem adaptar a metodologias que são contemporâneas da máquina de escrever é que não! É importante ouvir e aprender com cada indivíduo; é importante reconhecer a importância das pessoas e dos seus sonhos; é importante sentirmo-nos capazes.
E Sim, Somos Capazes!
Caderno de Apontamentos é uma coluna que discute temas relacionados com a Educação, através de um autor convidado.