Quando este artigo sair estarei em Dublin, capital da velha Hibernia, indo na peugada de Leopold Bloom. Aqui, o improvável herói moderno do magnum opus de James Joyce, Ulisses, tem direito a um dia inteiro: o Bloomsday, dia 16 de Junho, em homenagem à sua Odisseia de um dia.

Ulisses, publicado integralmente em 1922 por uma pequena editora em Paris, é talvez o mais ambicioso exercício de experimentação linguística de toda a literatura ocidental. É também o mais difícil. E não por acaso, senão porque Joyce assim o quis. Quando sondado por Benoist-Méchin sobre a possibilidade de fazer um esquema explicativo de forma a que o episódio conhecido por “Penélope” fosse correctamente traduzido, sugestão que recusou liminarmente, terá respingado “(…) Pus tantos puzzles e enigmas (no Ulisses) que os professores vão estar ocupados durante séculos  a discutir o que queria dizer, e essa é a única forma de assegurar a (minha) imortalidade (…)”.(1)

Mas o grande rasgo de Joyce não reside tanto no martírio que infligiu aos seus leitores, perpetuamente condenados a rastrear a profusão de referências magistralmente inseridas- até lemos ecos de Barbariccia, demónio que aparece no Canto XXI, v. 139 da Divina Comédia, (Ed elli avea del cul fatto trombeta (2)) -, ainda que a obscuridade de certas passagens apenas possa ser descrita como uma maravilhosa demonstração de sadismo literário.

Não, Joyce logrou muito mais. Invertendo tudo, tudo destruiu. Destruindo tudo, ergueu não um mero romance, mas a própria modernidade literária, então in statu nascendi. E, como Horácio, estava consciente do que tinha acabado de realizar, pelo que ambos podiam vangloriar-se, sem incorrer naquela húbris de alguns beletristas, de terem completado um monumento do que o bronze mais perene.(3)

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Arremedo subtilíssimo, Ulisses é a paródia das paródias. Numa surpreendente e dedálea manifestação de intertextualidade, Joyce elegeu como novo Ulisses, seu herói de infância, um judeu irlandês de 38 anos, vendedor de anúncios publicitários, cuckold, homem ridiculamente lascivo e, malgrado uma certa racionalidade e cultura científica, absolutamente banal- a própria interpretação joyceana do nome Odisseu, como sendo uma aglutinação de outis (ninguém) e Zeus e, portanto, querendo significar um divino ninguém (4), já continha, aliás, essa mesma ideia.

Passando por lestrígones, sereias e ciclopes modernos, este último um nacionalista irlandês antissemita que Bloom confronta no Barney Kiernan’s pub, Bloom tudo faz, incluindo salvar um Stephan Dedadulus trôpego (5) – alter ego de Joyce e protagonista do seu livro anterior, A Portrait of an Artist as Young – de uma rixa de rua com dois oficiais britânicos, algures nos esconsos de uma viela duvidosa pejada de lupanares – tudo isto num capítulo que assume a forma de uma peça teatral, tão fantasmagórica e evanescente como absurda.

(Este encontro ou resgate é, além de humorístico, uma imagem literária sublime e de poderosíssima significação alegórica: estabelecendo um paralelo com a reunião de Ulisses e Telémaco, este acte gratuit por parte de Bloom é o encontro entre um pai que perdeu o filho (Bloom) e um filho que perdeu o pai (Stephen), como se de um evento predestinado se tratasse).

Chegados a casa- entretanto, Bloom fez tudo para evitar aportar na sua irónica e malfadada Ítaca, sita em 7 Eccles Street -, Molly Bloom, qual anti-Penélope, não tinha estado a urdir e desurdir um sudário durante um vinténio, aguardando o seu guerreiro aqueu e esconjurando pretendentes, mas fingia dormir depois de um caso extramatrimonial com Blazes Boylan, peralvilho com voz de tenor, às 16h00min.

Imagine-se tudo isto em pouco mais de 700 páginas repletas de polifonia, pensamentos ubíquos, intersecção de planos num mesmo tempo diegético, poesia, história irlandesa, teologia Aquinate, e teremos uma pálida ideia da alucinogénica tapeçaria enciclopédico-literária que é Ulisses, como se de alguma forma Joyce tivesse encontrado e reerguido os escombros da antiga- e para sempre perdida- Ílion.

Sob a firmeza de postulados, o alinhamento de ideias, o sopro jesuítico-escolástico da escrita de Joyce, por um lado, e o mais ousado rompimento com tudo o que lhe antecedeu, por outro, é com isso que nos deparamos: um monumento, uma cidade, um país. A história de um homem que, no fim de contas, somos todos nós.

 “James Joyce, por Jacques-Emile Blanche, 1935, National Portrait Gallery, London” e “Joyce em 1915”.
1 ELLMANN, Richard- James Joyce, Oxford University Press, 1982 pág. 521
2 JOYCE, James- Ulysses, edition princep, 1922, Sylvia Beach’s Shakespeare and Company,
pág.177 / Ulisses, Relógio d’Água, fevereiro de 2015, página 194
3 HORÁCIO, Poesia Completa, tradução e comentários do Professor Frederico Lourenço, edições
quetzal, Odes 3.30, v.1, pág 204 e 205. Citação original: Exegi monumentum aere perennius
4 Op. cit. – pág. 3615 JOYCE, James- Ulysses, edition princep, 1922, Sylvia Beach’s Shakespeare and Company,
pág.567 e ss. / Ulisses, Relógio d’Água, fevereiro de 2015, página 553 e ss.