O PS tem quadros competentes para discutir a temática das Forças Armadas (FA), mas para o efeito pretendido, o de atirar para a porta de outros aquilo que produzem dentro de casa, a máquina partidária escolheu a crème de la crème, o ex-deputado Ascenso Simões. Ninguém melhor para derrubar o edifício firme dos valores da condição militar como um ex-deputado que teve a filha “Menina da Luz” a estudar no Colégio Militar, gerido por essa “praga de absentismo e alcoolismo” que, no seu douto entender dado à estampa no Expresso, grassa no Exército. Exemplo de referência moral, condenado em primeira instância a oito meses de prisão, pena suspensa, e a uma multa de 900 euros, por ter agredido e insultado um agente da PSP em setembro de 2020, ou modelo de gestão, enquanto Secretário de Estado, ao autorizar pagamentos indevidos na ERSE e agora condenado pelo Tribunal Constitucional a pagar uma multa milionária, vem, nesse artigo, desviar o foco do problema, ignorando a corrupção no Ministério da Defesa, liderado por uma sua camarada de partido, para a suposta má organização interna nas FA.
Lamento desiludi-lo, caro ex-deputado, o problema das FA não está na falta de soldados nas fileiras, está no excesso de boys & girls do seu partido nas prateleiras douradas da Avenida Ilha da Madeira. Lamento desiludi-lo, caro ex-deputado, o problema das FA não está no pragmatismo realista dos planos dos chefes militares, está na ideologia socialista dos dirigentes políticos do Ministério. Lamento desiludi-lo, caro ex-deputado, o problema das FA não está no seu subfinanciamento, está no reduzido orçamento e cativação das verbas no Ministério das Finanças.
Ponhamos de lado as pessoas e vamos às ideias numa discussão séria, porque isso é que importa, no caso e daí, desde já referir, que a ideia que nas Forças Armadas só se joga à sueca, bebe vinho e alimentam vícios é igual à que generaliza todos os políticos como uma cambada de corruptos.
As Forças Armadas têm, desde 1988, um Programa para a Prevenção e Combate à Droga e Alcoolismo nas Forças Armadas que, imaginem, é presidido por um representante da Direção Geral de Recursos da Defesa Nacional e, portanto, se supostamente funciona mal, tem num político a responsabilidade maior. O alcoolismo e o uso de drogas são problemas complexos e multifacetados que não têm soluções simples e o militar, antes de o ser, é um cidadão sujeito ao ambiente social e às vivências da sociedade portuguesa como um todo.
Nas FA esse problema é uma preocupação significativa dos vários níveis de Comando, porquanto são conhecedores das implicações sérias para a saúde e bem-estar dos militares, especialmente no caso das Forças Nacionais Destacadas, onde podem comprometer a prontidão operacional e resultar em riscos para a própria vida e a eficácia militar. Para um político, a morte de um militar em missão fica-se pelo lamento comentado em horário televisivo nobre. Para um comandante militar, a morte de um seu soldado é a certeza de que haverá um pai e uma mãe que nunca lhe perdoarão tal infortúnio. Já Camões (canto VII) advertia para “adivinhar perigos, e evitá-los, com militar engenho e subtil arte, …nunca louvarei o Capitão que diga: “Não cuidei”. Claro que Camões nunca pensou que um dia haveria no Ministério da Defesa um “Capitão” a cuidar de si e dos seus do partido e que acabou medalhado e arguido.
Ironias do destino a que as FA estão fadadas. Em resumo, os militares portugueses, se forem sujeitos a um estudo, daqueles que a ministra da tutela é pródiga em ajustar diretamente a uns especialistas amigos, chegarão à conclusão de que a taxa de prevalência de distúrbios do consumo de álcool e droga nas FA está muito abaixo daquela que acontece em universo académico e na sociedade portuguesa em geral. É um problema, sim, mas é o menor dos dramas que os chefes militares têm no seu dia-a-dia. Até por uma razão final, e permitam a ironia, para um político o Pera Manca é um vinho banal, mas para o salário atual de um soldado português é uma extravagância.
Estamos de acordo que a atual Lei de Programação Militar (LPM) não é adequada à realidade do País que somos, disse e até devemos ir mais longe, do País que queremos ser daqui a 10 anos. A adequação da LPM às atuais exigências das FA depende de vários fatores, incluindo a análise das ameaças e desafios à segurança nacional, as necessidades operacionais e os recursos financeiros disponíveis. No caso da LPM a proposta foi aprovada em votação final global com o PS isolado no voto favorável, o que diz bem do valor desta lei, e estabelece o investimento público em meios e equipamentos para as FA num montante global de 5.570 milhões de euros até 2034, sendo que apenas 5.292 milhões estão garantidos através de verbas do Orçamento do Estado. Contas feitas, são 500 milhões por ano e se seguirem a mesma lógica política do que tem sido a gestão destas verbas no final resultam na compra de mais ferro velho em segunda mão. Basta lembrar que a última decisão de equipar parte da Brigada Mecanizada com os Leopard 2 custou 71 milhões a Portugal e a unidade ficou incompleta por decisão política. Os 37 carros de combate Leopard 2 adquiridos por Portugal aos Países Baixos em segunda mão, no governo do saudoso Sócrates, deviam ter sido completados com mais 24 numa segunda fase, só que o negócio de 45,6 milhões de euros acabou por não se concretizar. Uma vez mais, é o poder político que deve dar os meios adequados ao cumprimento da missão que os limita. Do mesmo modo, na LPM os restantes 278 milhões em falta terão de ter origem em receitas próprias, pelo que lá terão os Ramos que se reinventar. Seguindo a doutrina Ascenso, talvez colocar o Exército na próxima apanha dos frutos vermelhos em Odemira resulte em boas DCCR (Despesas Com Compensação de Receitas), em reforço da mão-de-obra barata dos imigrantes que ali sobrevivem em contentores. As verbas da LPM devem chegar para tendas para ali acantonar a tropa!
Do mesmo modo, a Lei das Infraestruturas Militares (LIM) prevê um total de investimento até 2034 de cerca de 272 milhões, sendo que nos primeiros quatro anos o valor estará perto de 96 milhões, contas feitas, uma média de 22 milhões ano, o que, como facilmente se depreende, dará para substituir a degradada rede de águas das unidades, mas nunca para construir as novas instalações para concentração das 2 brigadas que o ex-deputado defende. Mais, o texto estabelece que “os imóveis a valorizar e a rentabilizar são objeto de despacho do primeiro-ministro” de modo que, se ainda existem Messes e Clubes de Oficiais abertas e a alimentar os vícios dos Ramos, a culpa estará na ausência “das orientações estratégicas relativas à gestão integrada do património imobiliário público” do governo. Será mais fácil acabar com essas “mordomias” dos militares que acabar com as regalias dos deputados e políticos em geral. Os militares contentam-se com a frugalidade dos refeitórios gerais, mas experimentem propor o encerramento do faustoso restaurante da AR e depois falamos. Os militares dispensam bem ter de gastar 0,16 € numa munição de salva disparada por um obus obsoleto num torneio civil de golfe, tal como dispensam a indignidade com que se arrumam valiosos generais com base em “morteiradas de interesse pessoal e político”. No demais, a carroça vazia do ex-deputado Ascenso faz mais barulho do que aquele disparo de salva. Fechar unidades na “linha da A24 entre Chaves e Viseu reunindo-as no RI 14 onde ainda ficavam edifícios livres” deve soar bem aos transmontanos que em tempos elegeram Ascenso para defender a região, contribui largamente para a política de coesão territorial com que o PS enche a boca, vai ao encontro das necessidades de recrutamento e resultará bem se, no futuro, por uma inesperada razão, o Exército tiver de crescer em número!
E, quanto a números, a retórica do ex-deputado anda longe da realidade. Os efetivos em falta face aos QO definidos pelo governo rondam mais de 5745 militares, superiores ao de uma brigada, pelo que o ex-deputado Ascenso já pode dormir tranquilo. O objetivo de reduzir o Exército está conseguido pelo seu próprio governo que, de há 8 anos a esta parte, sem e com a guerra na Ucrânia, olha para a Defesa com o mesmo desdém com que estoira 3,2 mil milhões na TAP.
Fechar o RI 10? Uma unidade de paraquedistas? E porque não também acabar com os Comandos e os OE? Porque não ficar só com os “soldados de 1,50 m a pintar paredes da porta de armas”? A incongruência do ex-deputado é notável. Perante a falta de efetivos, diante da necessidade de operacionais e especialistas, a solução apontada é aquela que o MDN segue há muito tempo. Porque não recuperar a mística destas forças especiais do Exército? Normalizar foi um dos erros que a “meia reforma que alocou ao CEMGFA novas competências” criou. “As estruturas políticas são hábeis em vencer pelo cansaço” e até o CEMGFA alinhou no processo ao pretender uniformizar o que é diferente. A mística destas forças especiais constrói-se de valores, tradições, símbolos e crenças compartilhados que unem os membros de uma unidade e quando é equilibrada com a ética e os princípios morais, com os chefes militares a incentivarem o pensamento crítico e a tomada de decisões éticas contribuíram para um maior recrutamento e adesão dos jovens.
Sobre a “sindicância pública das contas das Forças Armadas, de cada ramo”, a gargalhada que provocou no 7º piso do MDN deve ter-se ouvido na portaria. É a chamada “tempestade perfeita” que tem como exemplo ministros como João Gomes Cravinho que omite ao MP despesa com obras, que autorizou o negócio uma semana antes de Capitão Ferreira ter celebrado com a DGRDN o contrato de assessoria para a negociação desse mesmo contrato de manutenção dos helicópteros EH-101 ou a ministra Helena Carreiras que em 2022 das receitas previstas nos protocolos para arrendamento acessível apenas cobrou 30% e que escondeu conteúdo da assessoria de cinco dias contratada por €61 mil a esse mesmo ex-secretário de Estado. As contas dos Ramos são fáceis de auditar e internamente os casos de corrupção, que infelizmente acontecem, não passam impunes, ao contrário do que acontece nos muitos relatados nas 13 demissões ministeriais deste governo de António Costa.
Estamos de acordo quanto à necessidade de uma “nova ambição para fixar no país indústria privada de defesa, entidades com investigação” bem como quanto à urgência de dotar a Marinha com meios que lhe permitam alargar a sua responsabilidade na Zona Económica Exclusiva e mais ainda se a intenção futura é alargar isso à Plataforma Continental bem como equipar a Força Aérea com meios que não sejam apenas os mercados de segunda mão. O melhor exemplo do erro dessa política da “sucata” está nas carruagens dos comboios adquiridos pelo ilustre ex-ministro Pedro Nuno Santos. Também estamos de acordo quanto à necessidade de alargar a “realidade lisboacêntrica da sua atividade” com o recrutamento a ser garantido a partir de territórios vários para que “os militares possam ter vidas noturnas e famílias nas cidades mais próximas desses grandes aquartelamentos”.
Finalmente, mais de acordo estamos quanto à obrigatoriedade de “vencer o amiguismo, vencer o corporativismo, vencer o elitismo, vencer o despesismo, vencer o segregacionismo e vencer o ócio, tarefas ciclópicas que não podem esperar e para as quais precisamos de um poder político que tenha coragem e de chefes militares sem medo… É trabalhoso encontrar pessoas que encaixem no critério, mas não se pode dar como perdida a batalha.” De facto, não é fácil, e se já temos chefes militares sem medo, lamento desiludir, caro ex-deputado, mas não é o meu caro amigo que preenche os requisitos para dar lições e muito menos ser o próximo MDN.
Viseu, 26 de setembro de 2023