Foi há 450 anos, a 7 de Outubro de 1571 que, na recortada costa sudoeste da península grega, à entrada do golfo de Lepanto e não longe da cidade que hoje se chama Nafpaktos, se travou uma batalha naval decisiva para o futuro da Europa e do mundo.
A Europa do século XVI estava dividida por linhas religiosas e políticas, isto é, por convicções e interesses. Carlos de Habsburgo, Carlos I de Espanha e Carlos V da Áustria, reunia na sua pessoa as coroas de Espanha e do Sacro-Império. Tentara a hegemonia europeia e por isso tivera de enfrentar a França de Francisco I e os príncipes alemães protestantes em duelos sucessivos. O Imperador levara uma vida de guerras e negociações, da vitória de Pavia ao saque de Roma, da batalha de Mühlberg à paz de Augsburgo, em que se confirmara a divisão religiosa do Continente.
O Império Otomano estava a sueste da Europa e desde que Maomé II, em 1453, tomara Constantinopla, começara a ofensiva para Ocidente, por terra e por mar. Solimão, o Magnífico, conquistara Belgrado em 1521 e a Hungria em 1526, depois da batalha de Mohacs. Quando pusera cerco a Viena, em 1529, a sensação de perigo subira entre os cristãos. O Inverno obrigara os turcos a retirar, mas, em 1566, Solimão, já septuagenário, voltaria a querer tomar Viena. Mas morreria antes de tentar o cerco.
O sucessor, o seu filho Selim II – que teve os cognomes pouco magníficos e pouco vulgares para um príncipe muçulmano de Selim, o Bêbado, e Selim, o Louro – decidiu prosseguir a marcha para Ocidente, sempre por mar e por terra.
Selim era filho de Solimão e da sua esposa preferida, uma cristã da Ruténia, filha de um padre ortodoxo, chamada Anastasia Lisowska. Anastasia fora raptada e vendida como escrava para o Harém mas, graças à sua inteligência e à sua beleza, que Ticiano retrataria em “La Sultana Rossa”, tornou-se a primeira mulher da Corte de Istambul, conhecida pelo nome de Hurrém Sultana e Roxelana. Além de Selim, Roxelana deu outros cinco filhos a Solimão e conseguiu que os seus meios-irmãos fossem sendo afastados ou eliminados de modo a que fosse ele a suceder ao pai.
Os turcos tomaram Rhodes por mar em 1522 e cercaram Malta em 1565. Em 1570 atacaram Chipre e em 1571 completaram a conquista, tomando Famagusta aos venezianos. Para conseguirem a rendição de Famagusta, prometeram ao governador da praça, Marco Antonio Bragadin, que o deixavam sair em paz com a guarnição e a população civil – mas depois acharam por bem cortar-lhe o nariz e as orelhas, passearem-no pelas ruas agrilhoado e humilhado e esfolarem-no vivo.
O Papa Pio V (um papa austero, consciente dos abusos dos seus predecessores renascentistas, canonizado em 1712 por Clemente XI) quis enfrentar a ameaça turca através de uma aliança de poderes católicos. A Santa Liga foi formalmente estabelecida em 25 de Maio de 1571, ainda com o propósito de resgatar Chipre. O pacto era entre os Estados papais, a Espanha de Filipe II, as Repúblicas de Veneza e Génova, os ducados de Saboia, Urbino e Parma e os Cavaleiros da Soberana Ordem de Malta.
Apesar de convidados, o Sacro Império, a França e Portugal não entraram na Aliança: o Sacro Império assinara recentemente um tratado de paz com os turcos; a França tinha por inimigo principal os Habsburgo, e até se aliava aos turcos; Portugal considerava-se já suficientemente empenhado no esforço contra o Islão em Marrocos e no Oriente. Mas uma das galés da Ordem de Malta foi capitaneada pelo português Luís Mendes de Vasconcelos.
A armada cristã, chefiada por D. João da Áustria, filho bastardo de Carlos V, reuniu-se em Messina, na Sicília, e daí navegou até ao golfo de Patraikos, perto de Lepanto. Eram 210 barcos de guerra, equipados com canhões e levavam 30 000 soldados, na sua maioria venezianos e espanhóis. D. João da Áustria comandava o centro, o genovês Andrea Doria, ao serviço do Papa, a ala direita, e o veneziano Agostino Barbarigo, a ala esquerda. Na reserva, ficava D. Álvaro de Bazán, marquês de Santa Cruz. As galés aliadas misturavam-se neste dispositivo, mas 90% das forças eram venezianas e espanholas.
A frota turca, comandada por Ali Paxá, era ligeiramente superior à da Liga, com 230 galés. O confronto deu-se à boca do golfo, com o choque e a abordagem das galés, quase transformando a batalha naval numa batalha campal de infantaria, travada nos conveses dos barcos. A Sultana, de Ali Paxá, abordou o El Real de D. João da Áustria, mas Ali Paxá foi morto e a sua nau-almirante tomada. Apesar da reacção de almirantes muçulmanos, como o paxá de Argel, Uluch Ali – que comandava a ala esquerda turca, em frente a Doria, e penetrou a linha cristã, causando sérias perdas às galés da Ordem de Malta –, a reserva de Santa Cruz reequilibrou a situação e Ali teve de retirar para mar aberto, salvando umas 40 naves.
Consta que, na indecisão da batalha, D. João da Áustria deu ordens para que os remadores das galés – cristãos condenados por delitos comuns – fossem libertados e armados, com a promessa de que, se vencessem, ficariam definitivamente livres. A ordem foi recebida com escândalo pelos oficiais espanhóis, entre todos por Santa Cruz, mas D. João, como filho do Imperador e irmão do Rei, impôs a sua vontade. E assim se terá arregimentado uma reserva estratégica decisiva.
Um grande feito e uma Graça
Ao tempo, a vitória do Lepanto foi vista e saudada como um grande feito humano e guerreiro, mas também como uma graça de Deus, pela intervenção da Virgem Maria, Nossa Senhora do Rosário e das Vitórias. O vocativo “auxilium cristianorum” foi então introduzido na Ladainha da Virgem. O motor desta aliança fora o Papa.
Pio V, Michele Ghislieri, dominicano, inquisidor feito papa em Janeiro de 1566, era um homem de grande fé. Defensor da ortodoxia, empreendeu uma campanha severa contra os abusos, luxos e pompas da cúria de Roma e procedeu a uma série de diligências contra a simonia, a blasfémia e a sodomia entre o clero. Em contraste com os seus predecessores imediatos, preocupou-se com o bem-estar do povo de Roma, despendendo grandes somas para acudir às fomes e carências na cidade. E combateu a ameaça protestante em toda a sua extensão, opondo-se ferverosamente aos huguenotes franceses e excomungando a rainha Isabel I de Inglaterra. Foi a firme aliança que estabeleceu com Filipe II de Espanha que esteve na base da Santa Liga.
A vitória de Lepanto foi exaltada por toda a Cristandade. A mensagem do sucesso chegou a Filipe II, que estava no Escorial (ainda por terminar), ao princípio da tarde de 31 de Outubro de 1571. Os portadores da boa nova percorreram 3.500 quilómetros a uma média, então sem precedentes, de 150 quilómetros por dia. Filipe II rejubilou com a vitória e encomendou a Ticiano um quadro comemorativo. A vitória foi celebrada por toda a Europa em mais de meia centena de pinturas de artistas contemporâneos, como Vasari, Veronese, El Vicentino, El Greco, Tintoreto e muitos outros.
O remador cativo de Cervantes
A literatura também não esqueceu a batalha. Cervantes, que foi ferido em Lepanto, chamou-lhe, no “Prólogo al lector” das Novelas Ejemplares (1613), “la mas memorable y alta ocasión que vieron los passados siglos, ni esperan ver los venideros”. E, no seu livro de poemas, Viaje del Parnaso, põe Mercúrio a dizer-lhe, a ele, Cervantes, autor-protagonista: “Bien sé que en la naval dura palestra / perdiste el movimento de la mano / isquierda para gloria de la diestra”.
Mas já no Quijote (1605), no “discurso verdadeiro” do cavaleiro Ruy Pérez de Viedma, Cervantes celebrara a batalha histórica. Na narrativa de Viedma, “aquele dia”, o dia de Lepanto, provara que os turcos não eram invencíveis. Ruy de Viedma não tivera a sorte dos cristãos vitoriosos: ficara prisioneiro dos turcos, servindo como remador forçado. É este o estratagema que permite a Cervantes passar para o “lado de lá”, contar a história a partir do campo do inimigo – e formular críticas à política imperial da Espanha dos Áustrias e à obstinação das celebrações retóricas. Para ele, os grandes feitos não precisavam de celebrações: quando eram verdadeiramente grandes, impunham-se.
Cervantes levava a batalha a peito, daí que a sua curta referência a Lepanto em Don Quijote surja como uma espécie de interlúdio sério no meio da sua sátira generalizada, caucionada por Sancho, aos livros “de caballerias”.
O Rei, o Bardo e a expedição vitoriosa
Em Inglaterra, uma das repercussões da vitória de Lepanto foi o poema “The Lepanto”, do futuro Jaime I, a saudar a vitória da Santa Liga. Jaime VI da Escócia, que, pela morte de Isabel I, em 1603, se tornaria também Jaime I de Inglaterra, era um pensador e escritor de talento, continuador da idade de ouro isabelina e impulsionador da tradução inglesa da Bíblia (a célebre King James Bible).
Shakespeare era um génio prudente, atento aos riscos e às vantagens da relação com o poder; ou seja, atento às penas da censura isabelina e às vantagens de permanecer nas boas graças do seu sucessor. Ora, tendo o poema do rei Jaime sobre Lepanto sido republicado em 1603, Shakespeare, que conhecia a simpatia do novo Rei pela batalha, não quis deixar de trazer a guerra da Sereníssima contra os turcos para as suas peças. Much Ado About Nothing começa em Messina, depois de Lepanto; e, em Othelo, a expedição vitoriosa de que regressa o shakespeariano “mouro de Veneza”, experimentado capitão mercenário, pode bem ser a grande vitória contra os turcos.
Os repetidos confinamentos causados pelas sucessivas pestes de Londres davam ao Bardo frequentes ocasiões de leitura e investigação, e Shakespeare terá tido conhecimento da descrição de Lepanto de Richard Knolles na sua História do Império Turco, publicada em Londres, em 1603, sob o copioso título The generall historie of the Turkes from the first beginning of that nation to the rising of the Othoman familie: with all the notable expeditions of the Christian princes against them. Together with the lives and conquests of the Othoman kings and emperours.
Ali, Knolles sublinha os horrores da batalha, o mar tinto de sangue e o medo dos turcos, que descreve como inimigos jurados da civilização e da Cristandade, à espreita da guerra “como o leão bíblico”. Shakespeare também terá lido os contos de Giovanni Battista Giraldi, conhecido por Cinthio, Gli Hecatommithi. Dois desses contos – “Desdemona and the Moor” e “Egitia” – têm tudo para terem sido fontes importantes para Othelo.
Ter-lhe-á vindo daí, por exemplo, a ideia de um casamento misto ou intercultural, como a união de Otelo e Desdémona. Com um profundo entendimento da natureza humana, na sua permanente oscilação entre Deus e o Demónio, Shakespeare recriou em Othelo a figura do vilão Iago (que na narrativa de Cinthio, menos subtil, age mais por ciúme e despeito do que por inveja), sob o pano de fundo da guerra pelo Mediterrâneo e da alegria dos cristãos com a vitória sobre os turcos.
Os novos Lepantos
Lepanto foi há 450 anos. Não creio que valha muito a pena, na sua celebração, estabelecer retóricas paralelas com a Europa de hoje perante o Islão de hoje. Até porque, hoje, a grande ameaça à civilização não vem de fora, vem de dentro; não vem das armas, vem do irrealismo e do simplismo das ideias que alguns nos querem autocraticamente impor. E vem também da apatia dos que já não defendem nada nem ninguém e da desistência e da falta de comparência dos muitos que, discordando e dissidindo, se calam, se rendem, se conformam. São estes os novos Lepantos. Os nossos Lepantos. Os que nos devem convocar para o combate.