Há um princípio, inscrito até na Constituição, que estabelece a autonomia como elemento fundamental do Ensino Superior (em particular do ensino universitário). A ideia é simples de perceber: para se poder abrir o novo, para se descobrir, é preciso liberdade. Claro está que, para se ter liberdade, importa ter recursos financeiros, mas a autonomia não se resume a estes. O que está inscrito é a autonomia como liberdade de ir além, abrindo caminho à razão.
É a liberdade que permite a inovação, sendo aqui importante perceber que nem toda a inovação é igual. Há uma inovação que muda apenas ligeiramente o que tínhamos, que trabalha no pequeno passo, dita incremental, e há a inovação que muda as nossas vidas, transforma a economia e a sociedade, designada como radical. É nessa abertura que se materializa o potencial. O iPhone é, por exemplo, testemunho da orientação de Steve Jobs para a inovação radical.
Aqui separam-se as águas, há as economias e sociedades que conseguem este desenvolvimento, transformando o mundo, e outras que apenas são capazes de desenvolver aplicações (nomeadamente, para iPhone). Podem fazer-se muitas spin off de aplicação tecnológica, mas a sua base é sobretudo incremental e a sua aspiração é limitada. Também aqui se percebem as diferenças na inovação cultural e social.
Quanto mais constrangidas forem a liberdade e a autonomia, menos capacidade temos, ficando reservados a um caminho de reprodução.
Importa também compreender a diferença entre liberdade formal (a liberdade num dado enquadramento), de liberdade real (liberdade que muda as coordenadas da ordem simbólica prevalente). É esta última que permite a inovação radical (disruptiva).
No seu ensaio sobre a liberdade, o pensador Isaiah Berlin evoca Kant, recordando que o paternalismo é o maior despotismo imaginável. Ele condena a visão em que os reformistas sociais utilizam e manipulam as vontades e desejos dos homens. É preciso distinguir entre autonomia e heteronomia, agir ou ser sobre-agido.
Olhando para a realidade do nosso Ensino Superior e Ciência, podemos observar como grassa a heteronomia paternalista. As acusações de endogamia e concursos viciados caminham em paralelo com fenómenos de desvalorização e precarização. Em todos eles a liberdade é constrangida. O prevaricador tem saído reforçado (e muito). Pagam os nossos mais qualificados e o país como um todo.
Quando olhamos para as atuais políticas, vemos o promover destas autocracias. Quando confrontado com situações de claras irregularidades, a ação do ministro termina e acaba num ponto: pergunta ao reitor. Este ponto final esclarece que este é o princípio e o fim da sua (in)ação. Na maioria dos casos, limita-se a perguntar ao prevaricador.
É preocupante que se tenham procurado desmantelar e debilitar os mecanismos institucionais de contraditório. O pluralismo tem sido ameaçado.
Afirmar que não se deve governar contra os dirigentes tende a esquecer um outro lado: não se deve governar contra as pessoas.
Não temos vindo a promover a liberdade, nem a autonomia, mas sim a autocracia. Esta predomina na avaliação que privilegia o dirigente em detrimento dos pares, nos mecanismos de contratação que abusam da proximidade e da precariedade, e no mandamento de que, em caso de contestação, liquide-se a opinião contrária. Este não é o espaço para o conhecimento. Muita da emigração qualificada explica-se também por aqui e não somente pelas questões económicas.
Precisamos de perceber que a pluralidade e o contraditório são factores de equilíbrio, de melhoria e de correção. Temos de inverter a estratégia de desvalorização e precarização que se constitui como problema estrutural dominante. Os milhões de recursos públicos, que estão a ser desperdiçados nesta experiência, custam-nos muito caro e não são apenas financeiros. São toda uma geração qualificada.
Para invertermos este caminho, devemos ter uma legislação que permita equilíbrios e não a imposição heterónima. É fundamental que a tutela intervenha para regular e não limitar-se a assistir aos problemas empurrando-os para convictos paternalistas.
A escolha que nos é forçada, e que teremos de admitir, é a de uma liberdade última: assumir/ acreditar na capacidade de revelação dos nossos atos. Tal é a responsabilidade de cada um.
Presidente do SNESup
‘Caderno de Apontamentos’ é uma coluna que, às quintas-feiras, discute temas relacionados com a Educação, através de um autor convidado.