Há uns bons anos, dirigi-me a uma livraria e perguntei a uma respeitável funcionária, que insistia em ficar de olhos postos no computador, se tinham a Anna Karenina do Tolstoi. Havia várias respostas possíveis: “Não temos”, “Desse autor agora só o Guerra e Paz”, “Temos, mas a tradução não é boa”. Mas nada me preparou para a reposta que recebi: “Desculpe, a Ana já não trabalha cá”. Como era possível? A Anna Karenina afinal não tinha morrido? Tinha-se mudado de S. Petersburgo para Viana do Castelo? Caiu em desgraça e aceitou um emprego como livreira num Centro Comercial? Fiquei fascinado. Diz-se que um bom livro nos faz sonhar, mas é preciso ser mesmo uma obra-prima para que, mesmo não se fazendo a mínima ideia de que livro se trata, o efeito seja o mesmo.
Rilke afirmou que só deve escrever quem sente que morreria se não o fizesse. (Pena é que esse sentimento não tenha sido dado só a Cervantes, Shakespeare ou a Lobo Antunes). Mas com a leitura acontece algo semelhante. Por exemplo, eu comecei a gostar de ler, quando percebi que isso era uma ótima desculpa para não ir cortar a relva ao sábado de manhã. (Cada qual imagina a morte como bem entende). Para todos os efeitos, sempre achei mais interessantes histórias que começam com homens transformados em insetos, do que o tratamento de gramados no geral. Aliás, uma semana após uma polémica sobre o Plano Nacional de Leitura, aqui fica uma dica para o futuro, que potencia, também, uma poupança significativa orçamental: começar a ameaçar os alunos do ensino secundário dizendo: “Ou lês os Maias, ou vais com o Sr. Gonçalves cortar a relva da escola”. Estou certo que surgiriam mais leitores.
Ainda recentemente, o Papa Francisco escreveu uma carta sobre a importância da literatura, e, ao lê-la, percebemos como os tempos são outros. A certa altura, ele conta que os seus alunos lhe pediam para não ler o Cid – o mais antigo poema espanhol preservado – para dedicarem tempo à leitura de Garcia Lorca. Ora, eu não sei que alunos eram estes de que o Santo Padre fala. A mim nunca me perguntaram: “Professor, em vez deste texto de Aristóteles, não podíamos ler o Isaiah Berlin ou os textos da Anne Applebaum?” A Argentina fica, mesmo, noutro hemisfério. Mas é compreensível. A personagem central dos Maias é um jovem aristocrata, que tem um vasto espólio imobiliário, possui um consultório em plena baixa de Lisboa, regressa à capital depois de uma viagem pela Europa, e tem ainda recursos suficientes para frequentar a alta-sociedade lisboeta. Diante das circunstâncias que afetam hoje os jovens, é compreensível que não haja uma fácil identificação entre a obra e o leitor.
A verdade é que, segundo os dados de 2023, os dois livros mais vendidos o ano passado foram “A Criada” e “Hábitos Atómicos”, o que nos deve fazer temer um expectável retrocesso civilizacional. Por este andar, ou seremos todos figurantes duma feira medieval, o que não anda longe da verdade, ou a Coreia do Norte da Europa, na medida em que é duvidoso que qualquer arsenal nuclear português chegue a ser funcional. Ainda assim, os clássicos da literatura são mais úteis. “Crime e Castigo”, uma clara indicação que a um delito se segue uma pena. “Guerra e Paz”, uma forma de assinalar a complexidade das relações humanas, que são permanentemente tecidas do binómio presente no título. “Em Busca do Tempo Perdido”, que é o que basicamente todos andamos aqui a fazer.
Ninguém diria, acerca do seu clube, que o que importa é que haja jogadores e que eles deem chutos na bola. Mas sobre ler, ao que parece, qualquer coisa serve. De facto, quando se diz que “um burro carregado de livros é um doutor”, nunca se chegou bem a especificar os livros em causa. É indiferente que eles sejam os “Cem Anos de Solidão”, ou o “Grande Livro das Piadas Secas”. Lá no fundo, a bem da ecologia, é sempre o burro que importa.
Talvez seja realmente isso que torna a literatura especial. É aceitável dizer-se que mais vale comer alguma coisa, do que não comer nada. Da mesma forma que parece incontestável que é melhor ter uma casa, do que viver na rua. Mas, quanto à leitura, duvido que se possa simplesmente adaptar o argumento. Na verdade, a literatura é uma espécie de feitiçaria dos pobres. Quem tem possibilidades económicas investe em bruxos de qualidade e recebe acertadas respostas às suas inquietações. Quem não tem os mesmos recursos financeiros, não tem outro remédio senão contentar-se com um livro e sair mais desgraçado do que entrou. Em ambas acontece um feitiço qualquer. Na literatura, um charlatão é mais fácil de apanhar.