“Prefiro uma má verdade a uma boa mentira”. Ouvi pela primeira vez esta frase há alguns anos e de tanto sentido que fez tornei-a uma espécie de mantra profissional. Quem comigo colabora – ou colaborou – reconhece em mim uma profunda inaptidão para lidar sequer com as meias verdades ou com as mentiras por omissão. Sou assim um fã confesso do anglicismo blunt.
Acontece que, para mal dos meus – seguramente muitos – pecados, vivo num país regido por pessoas que acreditam precisamente no contrário. E colocam-no em prática, dia após dia, mês após mês, ano após ano.
A última atualização das pensões de reforma é um bom exemplo do que digo.
Com o racional de acompanhar o – eventual – crescimento do país (com base no PIB), salvaguardando sempre o poder de compra dos pensionistas (com base no IPC), foi criado um mecanismo (leia-se, Lei) de atualização das pensões de reforma.
Este mecanismo, criado em 2006, tem o cunho dos – ainda – dois partidos mais votados da Assembleia da República. Estes, ao longo de 16 anos, nunca viram razão para o alterar. E percebe-se porquê. Porque nunca o levaram a sério, desconsiderando-o sempre que deixa à evidência o seu demérito.
Este ano voltamos a ter o desvirtuar do afinal não tão virtuoso mecanismo. Esperar-se-ia que fosse finalmente assumida a sua falência, abrindo-se a porta para uma discussão profícua sobre o tema. Mas não!
Em junho ouvimos a primeira “boa mentira” do ano sobre o tema, com o Primeiro Ministro a declarar de forma categórica que o mecanismo seria para aplicar na íntegra. De resto, chegou a ficar agastado com a dúvida do jornalista.
Dois meses volvidos, a segunda “boa mentira”, com António Costa a anunciar uma previdente medida anticrise que oferecia – em jeito de bónus – a antecipação de metade das pensões do ano seguinte. E de novo, quando questionado sobre as consequências de tamanha generosidade nos anos vindouros dos pensionistas, o líder do Governo mostrou indignação.
Em setembro e quando já não havia forma de negar os evidentes cortes, que aportavam uma grave perda no rendimento futuro dos pensionistas, lá veio – muito a medo – a “má verdade”: o sistema de proteção social não chegaria ao final desta década se não se fizessem estes cortes agora.
Ainda assim foi-nos apresentada apenas uma meia “má verdade”, prontamente corrompida pela “boa mentira” de que esta exceção se deve a fatores externos e imprevisíveis. No caso, uma inflação inesperada e galopante, fruto da pandemia e da guerra.
Já antes Pedro Passos Coelho tinha feito tábua rasa da medida (relembro, Lei) por fatores de força maior e que não tinha como controlar. Na ocasião, as imposições da troika e depois de muitas – tantas – “boas mentiras” de José Sócrates.
E são estas exceções, que nada mais são do que “boas mentiras”, que viciam qualquer discussão séria sobre o assunto, e nos empurram para o pântano dos pequenos ajustes, mantendo vivo um modelo comprovadamente incapaz.
A verdade – se se quiser, a “má verdade” – é que o mecanismo não serve. Mais grave que isso, todo o Sistema de Proteção Social, da forma como existe atualmente, simplesmente não serve!
A Comissão Europeia alerta para o precipício para que nos dirigimos, com as pensões a ficarem pela metade até 2040 (em menos de 20 anos). Nem o atual Governo, capaz das mais criativas construções sobre a realidade, consegue garantir o atual sistema para além da próxima década.
Bem sei que o tema é delicado. Dar a verdadeira “má verdade” a quem representa mais de 35% do universo eleitoral pode ser a diferença entre ganhar umas eleições com maioria absoluta ou perdê-las e passar para a oposição.
Mas verdadeiramente dramático é perceber de forma clara que o sistema não serve e insistir-se no erro até não haver mais por onde errar. E desesperante é perceber que modelos há, à vista de todos, que funcionam. E que fazem falta a Portugal!