Nos últimos dias, fomos confrontados com mais um episódio que, estranhamente, passou pelos pingos da chuva: a revelação de que a Metro de Lisboa tem vindo a monitorizar, desde 2022, as redes sociais de três cidadãos que se têm manifestado contra a construção da estação de metro de Campo de Ourique . Trata-se de uma prática autoritária que compromete os valores fundamentais de uma sociedade democrática. Este episódio, longe de ser isolado, evidencia um padrão perigoso de abuso de poder por parte de instituições públicas que deveriam servir os cidadãos e não intimidá-los.
A empresa, num esforço para minimizar o impacto das acusações, rejeitou a palavra “vigilância” e classificou as suas acções como “um normal acompanhamento das opiniões publicadas”. No entanto, esta tentativa de suavizar a situação não só falhou em convencer a opinião pública, como expos, de forma ainda mais evidente, a gravidade das práticas adoptadas.
Classificar a monitorização de cidadãos como um dito “normal acompanhamento” é um eufemismo perigoso. A monitorização sistemática de opiniões nas redes sociais, focada exclusivamente em vozes críticas, não é um acompanhamento imparcial, mas sim uma forma de escrutínio selectivo. Este tipo de prática aproxima-se de mecanismos totalitários de vigilância, especialmente quando conduzida por uma entidade pública que deveria respeitar os direitos dos cidadãos.
A monitorização de redes sociais, mesmo que baseada em informações publicamente acessíveis, não está acima da lei. Deve obedecer aos princípios de finalidade e proporcionalidade, tal como consagrados no Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (RGPD). Não basta alegar que se trata de informação pública. O uso desses dados, em especial por entidade públicas, deve obedecer ao estritamente necessário, proporcional e dirigido a um objectivo claro, legítimo e específico. No entanto, a prática adoptada pela Metro de Lisboa demonstra precisamente o contrário: uma utilização de dados vaga, direccionada para silenciar ou controlar vozes críticas, sem uma justificação legal ou ética que a sustente.
Mais preocupante ainda é o precedente que estas práticas estabelecem. Hoje, é um projecto de expansão do metro; amanhã, poderá ser qualquer outro tema com características mais sensíveis. Quando a vigilância é utilizada como ferramenta para silenciar ou controlar, estamos a caminhar para um modelo de governação que privilegia o poder sobre o direito.
Neste contexto, o papel do Encarregado de Proteção de Dados (EPD) da Metro de Lisboa, incumbido de assegurar a conformidade das práticas adoptadas pela entidade com o RGPD, suscita fundadas dúvidas: foi o EPD formalmente consultado acerca desta prática? Em caso afirmativo, de que forma foi justificada a sua legalidade? Existe documentação que corrobore esta decisão e ateste a realização de uma avaliação de impacto sobre a protecção de dados, conforme exigido pelo RGPD?
A ausência de esclarecimentos sobre estas questões é particularmente grave e sublinha a necessidade de uma investigação exaustiva e rigorosa. Sem uma explicação clara sobre a finalidade, proporcionalidade e legalidade desta prática, é difícil imaginar como o Metro de Lisboa poderá sustentar a legitimidade da sua conduta. A ausência de transparência é alarmante e abre caminho para abusos futuros. Usar informações públicas para fins que ultrapassam a sua finalidade inicial não é apenas uma violação do espírito da protecção de dados; é, muito possivelmente, uma violação directa dos nossos direitos e liberdades.
Este caso, embora grave, é apenas mais um capítulo de uma longa série de abusos que têm manchado a história recente da capital. Recordemos o escândalo durante o mandato de Fernando Medina na Câmara Municipal de Lisboa, quando dados pessoais de activistas russos e angolanos, que exerceram o legítimo direito de participar em manifestações, foram partilhados com as respectivas embaixadas. Nesse episódio vergonhoso, a CNPD aplicou uma multa de 1,25 milhões de euros à autarquia, um valor que, na prática, foi suportado pelos contribuintes, enquanto os responsáveis continuaram impunes.
A reincidência de práticas abusivas na privacidade e protecção de dados em Lisboa expõe uma falência estrutural gritante. Como é possível que estes casos continuem a acontecer, apesar das sanções aplicadas e da indignação pública que geram? Isto não se trata de meros lapsos administrativos, mas de um padrão sistemático que revela uma cultura institucional permissiva e irresponsável, onde os direitos fundamentais dos cidadãos são tratados como obstáculos burocráticos. Este facilitismo institucional permite que práticas de vigilância e abuso de poder prosperem sob o manto de justificativas frágeis e eufemismos administrativos.
A explicação apresentada pelo Metro de Lisboa — classificando a monitorização como um “normal acompanhamento” — é um insulto à inteligência dos cidadãos e um exemplo flagrante de desrespeito. Este tipo de retórica vazia não apenas procura mascarar uma conduta inaceitável, mas também perpetua a desvalorização dos direitos consagrados na nossa Constituição e no RGPD. Esta atitude desmascara uma entidade que, em vez de servir os cidadãos, os observa e os intimida, comprometendo ainda mais a já fragilizada credibilidade das instituições públicas.
Lisboa não pode continuar a ser palco de violações reiteradas de direitos fundamentais que são disfarçadas sob pretextos administrativos ou justificações inverosímeis. É intolerável que práticas como estas sejam tratadas como “desvios menores” quando representam ataques directos à liberdade e à privacidade. A resposta não pode ser apenas mais uma multa simbólica, paga com o dinheiro dos contribuintes, mas sim uma responsabilização efectiva e individual dos decisores. Sem consequências reais para os responsáveis, estaremos a perpetuar este ciclo de abuso e negligência institucional.
É urgente implementar mecanismos de supervisão rigorosos e reformas estruturais que garantam o cumprimento das normas de protecção de dados e, acima de tudo, o respeito pelos direitos dos cidadãos. Este caso não deve ser tratado como mais uma manchete efémera, mas como um ponto de viragem para exigir responsabilidade, transparência e o fim deste padrão de abuso de poder. Não podemos aceitar nada menos do que uma mudança real e duradoura. Os cidadãos não são alvos, e a democracia não pode ser continuamente desrespeitada por aqueles que deveriam defendê-la.