Nos últimos anos tenho tido o privilégio de participar no processo de transformação que estamos a viver rumo ao objetivo de uma mobilidade mais sustentável.

Têm sido anos complicados, pandemia, confinamentos, teletrabalho, desemprego num turbilhão de adaptações exigentes e que têm colocado à prova as nossas capacidades de resiliência.

Contudo, tem sido gratificante participar neste processo de transformação, na constituição de um novo mercado e que nos últimos 6 anos teve uma evolução fantástica em todos os indicadores.

Depois do ciclo de constituição do mercado, marcado pela afirmação da mobilidade elétrica, iremos entrar agora num novo ciclo, o da consolidação.

Um ciclo, com muitos desafios, muito exigente e que irá necessitar de uma maior capacidade de resposta dos municípios, dos Operadores das Redes de Distribuição e da própria MOBI.E, mas que irá viver ainda sobre a influência, embora tendencialmente decrescente, de incentivos públicos, à aquisição e abate de veículos, aos carregamentos, ao desenvolvimento da infraestrutura de carregamento, benefícios fiscais, isenções totais ou parciais de estacionamento e/ou portagens.

Importa assim efetuar alguma reflexão sobre como deverá ser desenvolvido o ciclo da consolidação.

1 – O modelo Mobi.E é um modelo centrado no utilizador, no sentido de transmitir a melhor experiência possível para quem tem necessidade de utilizar a mobilidade elétrica, daí os princípios que a própria União Europeia só agora começa a dar-lhes relevância, como a universalidade e a integração das redes de carregamento, objetivo bem claro na proposta de regulamentação europeia que se encontra em discussão. Contudo, para a mobilidade elétrica ser parte da solução para o problema da sustentabilidade, o conceito deverá evoluir do utilizador de veículo elétrico para o utilizador de mobilidade sustentável.

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2 – Necessidade de enquadrar o desenvolvimento da mobilidade elétrica numa perspetiva mais abrangente e integrada no conjunto de políticas a implementar para a mobilidade sustentável – transportes públicos, modos de mobilidade suave, mobilidade partilhada e transporte individual.

3 – O processo de desenvolvimento da infraestrutura de carregamento de acesso público deverá obedecer a um planeamento integrado, não só com a infraestrutura de carregamento de acesso privado como também dos objetivos modais fixados em cada região.

Nesta perspetiva, pergunta-se – Será que é o Setor Energético, onde está hoje enquadrada a mobilidade elétrica, que está mais bem posicionado para enfrentar estes desafios?

De facto, o processo de alcançar uma mobilidade sustentável que em 2050 seja neutra em termos de carbono não se esgota na mera transferência do parque de viaturas de combustão interna para viaturas elétricas. É um processo muito mais complexo e abrangente que envolve não só esta mudança como a transformação da quota modal associada à mobilidade, com predominância do transporte público e, muito provavelmente, um ajustamento em baixa do parque automóvel.

Por exemplo, Barcelona anunciou recentemente como objetivo para 2025 atingir 65% na quota modal dos transportes públicos.

Parece-me que a abordagem abrangente e a definição de objetivos integrados irá ser uma tendência futura das principais cidades europeias e delas decorrerá a avaliação dos potenciais impactos no transporte individual onde a mobilidade elétrica será cada vez mais fundamental. Numa fase de franco investimento na área é preciso perceber como deverá evoluir o parque automóvel, no seu conjunto, quais as necessidades que deverá servir no futuro para, por exemplo, se poder dimensionar e planear corretamente o investimento na rede de carregamentos de veículos elétricos.

Em 2015, o poder político percebeu que as competências da mobilidade elétrica deveriam ser transferidas para a esfera da Secretaria de Estado da Mobilidade e esta medida acabou por influenciar decisivamente o sucesso alcançado durante o ciclo de constituição do seu mercado.

Contudo, ao nível regulatório a mobilidade elétrica continuou a ser considerado o parente pobre do setor da energia. Mais de três anos após o início da fase de mercado e um ano e meio depois de atingir a fase plena, o Conselho Tarifário do regulador do setor energético não conta com qualquer representante da mobilidade elétrica.

Em poucos meses assistimos a mudança de critérios, provocando administrativamente volatilidades abissais nas tarifas reguladas, umas reduzem cerca de 50%, enquanto outras aumentam cerca de 80%, sem ter em conta os preceitos relativamente aos prazos mínimos legais para recuperação dos investimentos e que um mercado com poucos meses de atividade plena necessita e com total desprezo dos pareceres de entidades envolvidas.

Não fosse a rápida intervenção do Governo para corrigir esta situação teríamos assistido a uma quebra de confiança e de expetativas defraudadas sem precedentes num mercado embrionário que conta com mais de 70 empresas aderentes, que vêm criando centenas de postos de trabalho e valor para a economia nacional e com mais de 58.000 utilizadores que já optaram por participar nesta mudança com as suas expetativas defraudadas.

Para este novo ciclo, urge, portanto, encontrar uma forma de imprimir um maior dinamismo, mais estabilidade, mais sensibilidade e uma maior integração da mobilidade elétrica na área dos transportes.

Desta forma, o caminho parece-me claro. Entregar, à Mobilidade as questões que são da mobilidade, como as políticas integradas com os diversos modos, o planeamento da infraestrutura de carregamento e a operação do modelo e deixar à energia as questões que são da energia, como a segurança das instalações e a produção da matéria-prima que se quer cada vez mais verde.

Este será o primeiro passo para se garantir que os exigentes objetivos de transformação do setor dos transportes são atingidos de forma integrada e devidamente planeada neste longo desafio que todos estamos a viver da descarbonização da nossa economia.