Circulou por entre as Organizações Desportivas (OD) o documento sobre o financiamento do Desporto em Portugal, produzido pelo gabinete da ministra adjunta e dos assuntos parlamentares com a tutela do Desporto, , que propicia algumas reflexões.

Falta investimento ao Desporto nacional. Quando se compara o financiamento do Desporto em Portugal, com a média Europeia, verifica-se que se caracteriza por níveis de investimento público dos mais baixos a nível europeu (aproximadamente 40 euros/habitante, quando a média europeia é de 113 euros/habitante), com um orçamento que corresponde a 0.04% da despesa total (115.158 105 milhões de euros, em 2022), quando os mesmos serviços recreativos, desportivos e comunitários, valem em média 1% da despesa pública na EU.

A conclusão óbvia é que o financiamento público em Portugal não representa a cadeia de valor que a prática de exercício físico e de atividades desportivas pressupõem ao longo da vida (benefícios para o praticante, para os espectadores, para os voluntários, dirigentes e outras atividades profissionais no âmbito do mercado do Desporto, além do mercado não relacionado com o Desporto).

Isto para não falar do facto de, só em 2022, dez anos depois, terem sido repostos os valores de financiamento do Desporto retirados às OD devido ao período de intervenção da troika (crise subprime em 2008) com um montante global de financiamento comparado de 37.162.265 ME (2012); 36.527.709 ME (2021); e de 40.764.493 ME (2022).

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Neste quadro de subfinanciamento, aduzido a níveis de prática insuficientes, e condicionalismos ao financiamento privado, por via do consumo das famílias, e da falta de investimento privado, seria de elementar justiça que fosse feita a correção complementar dos valores de financiamento, sem cativações desnecessárias, o que permitiria uma injeção adicional de cerca de 10 ME às OD produtoras de Desporto, conforme se constata na taxa de execução do Instituto Português do Desporto e Juventude (IPDJ) em 2022 (84.6%).

Falta um quadro regulado e racional do financiamento de Organizações Desportivas. A evolução da execução orçamental de despesa do IPDJ permite concluir que o Estado, via IPDJ, financia: 2 Comités; 3 Confederações, 65 Federações Desportivas com Utilidade Pública Desportiva (UPD), e 3 Fundações, num total apurado de 587.812 atletas, especificamente:

  1. As Federações Desportivas (FD) através do financiamento programático de cerca de 764.493 €/ano;
  2. O Comité Olímpico de Portugal e Comité Paralímpico de Portugal para os programas de preparação Olímpico e Paralímpico, em cerca de 6.960.399 €/ano;
  3. A Autoridade Antidopagem de Portugal, com 1.351.048,99 €/ano;
  4. Autoridade para a Prevenção e Combate à Violência no Desporto com 1.028.584 €/ano;
  5. Fundação do Desporto com 604.000 €/ano, sendo o presidente do Conselho Administração nomeado pelo Governo.

O Desporto possui dinâmicas que exigem do Estado funções de regulação económica, porquanto as OD competem em mercados de concorrência pelos benefícios gerados e pelo financiamento público. É exigível que o Estado assuma o poder de regulação. Não se entende, porém, que o mesmo Estado:

  1. Promova a delegação e descentralização de funções de regulação a privados ou instituições de outra natureza, não produtoras de Desporto, o que num quadro de subfinanciamento estatal, provoca uma desnecessidade regulamentar e operacional, porque redundante;
  2. Na sua função reguladora, não exija as mesmas regras de funcionamento a todas as entidades que financia sob a forma de contratos programa, quando se verifica que os custos de organização e gestão de algumas OD ultrapassam em muito os 20% da verba contratualizada.
    1. Na Autoridade Antidopagem de Portugal, as despesas com pessoal representam cerca de 540.069,97 €/ano (40% da verba contratualizada com o Estado);
    2. Na Autoridade para a Prevenção e Combate à Violência no Desporto as despesas com pessoal representam cerca de 762.584,00 €/ano (75% da verba contratualizada com o Estado);
  3. Considere o Desporto Escolar (DE) como parte do integrante do financiamento do Desporto, com um valor total investido de 47.459.928 €, para 175 mil estudantes, onde se inclui, além dos créditos horários (22.600 correspondentes a 1027 horários, mais os alocados à estrutura nacional, DGE e DGEStE), o funcionamento e organização de atividades, bem como instalações desportivas, que representa um valor provisório de 6.000.000 €, verba anual que resulta da afetação das receitas dos jogos sociais, aceitando tacitamente o anacronismo do DE possuir verbas anuais superiores ao somatório de todo o investimento nacional nas OD.

Em suma, ou o Estado desconsidera o DE como integrante do financiamento ao Desporto ou se o faz, modifica-o, quer quanto ao conceito (Desporto na escola e não DE), quer quanto aos objetivos, quer quanto ao modelo. Um modelo que financie, não a escola, mas projetos desportivos em contexto escolar, integrando Clubes/Associações/Federações/Autarquias, privados, etc.

Falta revisitar a (des)organização sistémica do Desporto em Portugal. Uma prioridade adiada, a começar pela descriminação em cada uma das OD com financiamento: da missão, competência e fundamentação em face dos poderes delegados; dos recursos disponíveis para o desenvolvimento da atividade (humanos, materiais, organizativos) e respetivo financiamento público; dos resultados, atuais e históricos, em face da sua missão institucional e financiamento disponível.

Falta equidade nas regras que regulam a atribuição do apoio financeiro nos pagamentos das deslocações às Regiões Autónomas. Não se entende que sendo o arquipélago da Madeira e dos Açores, parte insular do país, tenham as FD (com exceção do andebol, basquetebol, futebol, futsal, Hóquei em Patins, Ténis de Mesa e Voleibol) de assumir, o “principio da continuidade territorial”, contribuindo para a coesão nacional, independentemente de qualquer comparticipação estatal, via IPDJ. Urge que o Estado assuma, de igual forma, para todas as equipas, clubes e atletas de todas as FD, esta comparticipação em campeonatos nacionais e Taças de Portugal.

Falta considerar o mérito na distribuição dos recursos. A grande perplexidade, cuja resolução justifica uma medida corretiva, prende-se com a falta de definição de critérios de repartição de recursos disponíveis, em função de um conjunto de indicadores previamente determinados, assim como a avaliação dos impactos gerados e sua consequência. Num cenário de escassez de recursos, cujo impacto na capacidade das organizações é notório, condicionando a missão de desenvolvimento da prática desportiva e aumento de qualificação dos agentes desportivos, não se percebe a valorização, quase absoluta, do financiamento com base no histórico, aquando da atribuição dos financiamentos gerais às OD.

Isto pode ser constatado no financiamento público nos contratos programa regulares, onde a posição relativa no decurso dos anos se mantém inalterável, independentemente da avaliação dos indicadores métricos da tutela sobre a criação de valor desportivo e impactos gerados.

Urge mudar o paradigma, de um controlo burocrático, para um controlo de programa de desenvolvimento desportivo, indo ao encontro das reais necessidades das OD, que não se resumem ao financiamento, congregando esforços numa partilha de recursos necessários ao tecido desportivo (exemplos, já identificados, comunicação, desmaterialização, formação, sponsorização, etc.).

Falta corrigir a Incoerência do enquadramento legal das verbas dos jogos sociais. Urge a reformulação do modelo de financiamento que vigora há décadas e que se baseia no Fundo de Fomento do Desporto (FFD) que existiu até aos anos 90, gerindo os montantes recebidos dos Jogos Sociais. O Desporto, gerador da receita dos jogos sociais, não tem o retorno correspondente, pelo menos à importância instrumental de veículo de geração de receita a redistribuir. Somente 10.29 % das receitas geradas são redistribuídas para o ministério que tutela o Desporto, sendo destes somente 8.87% transferidos para o IPDJ para o fomento e desenvolvimento de atividades e infraestruturas desportivas.

Seria da mais elementar justiça que se promovesse, juntamente com as restantes entidades (Ministério da Administração Interna, Estado, Presidência Conselho Ministros, Ministério Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, Ministério da Saúde, Governo Regional Madeira e Açores, Santa Casa da Misericórdia), um acordo para o aumento percentual das verbas para o Desporto. Cada 1% de aumento pressupõe um reforço de cerca de 5 ME.

Falta corrigir o “escândalo” com a distribuição das receitas diretas da exploração e prática das apostas desportivas. Nos termos da lei (67/2015) determina-se que as verbas resultantes sejam atribuídas às entidades objeto da aposta a repartir pelos praticantes, consoante o caso, e pela Federação que organize o evento, incluindo as ligas se as houver.

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Quando analisamos a distribuição destas verbas pelas modalidades, constatamos pelo menos uma perplexidade que carece de uma correção imediata. Só o futebol, entre a Federação Portuguesa de Futebol (34.631.486 €) e a Liga de Futebol (12.616.175 €) são beneficiários diretos com 76.6% dos valores das apostas desportivas, sendo que este valor é superior a todo o financiamento somado das restantes OD (2 comités; 3 Confederações, 65 Federações desportivas com UPD e 3 fundações). Como se não bastasse, acresce a esta verba por parte do IPDJ, para a Federação Portuguesa de Futebol, a verba do contrato programa regular que é só o maior de todas as OD (3.336.738 €)

Portugal, fazendo parte da EU, rege-se pelo Modelo Europeu Desporto (MED), resultado do reconhecimento da sua importância económica e relevância como parte integrante da identidade europeia, devidamente ratificada na conferência intergovernamental organizada para rever o Tratado de Maastricht, anexada ao Tratado de Amesterdão uma declaração relativa ao Desporto e mais tarde no tratado de Lisboa (2007) onde foi dado o justo reconhecimento da sua especificidade, conceito jurídico estabelecido pelo Tribunal de Justiça da União Europeia, expresso no artigo 165.º do Tratado Fundamental da União Europeia.

Uma das características deste modelo foi a contribuição para o financiamento do Desporto, em todos os Estados-membros, das atividades ligadas ao jogo (incluindo as apostas desportivas e as lotarias), geridas por operadores privados ou pelo Estado, onde deveria de prever, em sede nacional mecanismos de solidariedade, reconhecendo que a maioria das atividades ocorre em estruturas sem fins lucrativos baseadas no voluntariado, com a importante função social que desempenham (dirigentes, árbitros, treinadores), assim como o aprofundamento dos mecanismos que garantam a sustentabilidade financeira de um modelo que se quer reforçar, nomeadamente:

  1. A solidariedade entre grandes e pequenas FD sob a forma de centros de partilhas de competências e recursos;
  2. A solidariedade, em cada Federação, entre o Desporto profissional, ligas e os grandes clubes e as pequenas Organizações Desportivas de base;
  3. A existência de mecanismos de regulação social, com a canalização de fundos públicos eminentemente para as Federações sem expressão comercial.

Se assim não for, existe um risco objetivo de só sobreviverem os desportos mais atrativos comercialmente e, dentro de alguns desportos (exemplo do futebol), alargar-se o fosso entre grandes e pequenos clubes (o que se está a verificar).

O que acontece em Portugal, com os jogos online, não tem paralelo a nível europeu. Urgem modificações, no pleno respeito pelo MED, garantindo a existência de um mecanismo de repartição que preserve o equilíbrio através de uma maior distribuição pelas entidades produtoras do Desporto, e a regulação da separação entre os fundos públicos e as receitas privadas, geradas por atividades comerciais (venda dos direitos de transmissão televisiva; exploração dos jogos online) que provocam uma distorção no modelo de financiamento global, e que prevejam a proteção das organizações menos atrativas comercialmente, com funções públicas delegadas.