Este é o primeiro de dois artigos sobre a temática: um sobre a integridade nas organizações desportivas e outro sobre as ameaças à integridade, especialmente associadas às questões de género.

O desporto assume uma inquestionável função social, educacional e cultural, em particular no seu papel determinante em transcender as barreiras políticas, geográficas, étnicas, religiosas, de identidade nacional e outras, unindo as pessoas em todo o mundo, para além do potencial de superação e realização humanas, facto que nos apaixona.

A valorização desta função social deve, face à natureza específica do desporto e à autonomia das suas estruturas representativas, ocorrer dentro dos limites da lei e em conformidade com os princípios de boa governação, democráticos e transparentes, com representatividade significativa de todas as partes envolvidas e interessadas.

A realidade é que à medida que o desporto, enquanto fenómeno social, cresce e se globaliza, com o concomitante aumento do financiamento público e o volume de receitas privadas, fundamentalmente dos contratos comerciais dos direitos de exploração televisiva, deveriam aumentar, também, as exigências e as responsabilidades de gestão, de prestação de contas, e de transparência das organizações que o suportam, consignadas aos superiores princípios éticos que constituem o núcleo essencial da sua imprescindível relevância social.

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Esta preocupação deveria de contrastar, positivamente, com o avolumar de escândalos de corrupção a que assistimos e que descredibilizam o valor social e facial do desporto, arruinando a sua reputação e sustentabilidade económica.

O atual estado do desporto obriga a um outro nível de ação, passando inapelavelmente pela implementação de orientações estabelecidas no domínio da boa governação, intransigente perante violações às regras e em estreita parceria com autoridades, sempre que se percebe que existe uma manipulação dos resultados de uma competição, seja pelo mero interesse desportivo ou por outros benefícios, principalmente financeiros: a atletas, treinadores, árbitros ou dirigentes, ou outros meios de coação relacionados com apostas ilegais.

A boa governação representa o elemento crucial e central para robustecer as organizações desportivas, ODs, face às ameaças crescentes à sua integridade, sem a qual se transforma num bem transacionável comum comprometendo, desta forma, o seu principal ativo na mobilização social: a credibilidade que resulta da incerteza do resultado desportivo baseado na superação dos atletas e equipas.

A boa governação e a integridade devem, por isso, assumir especial protagonismo como condicionantes de uma nova modernidade desportiva, não só para prevenir a emergência de fenómenos de fraude, particularmente no que respeita à manipulação de competições desportivas, mas também para acompanhar o maior escrutínio social quanto ao uso indevido de dinheiros públicos e/privados.

A exemplo das medidas adotadas pelo fórum internacional para a Integridade do Desporto, as entidades que regulam o desporto a nível nacional, Secretaria Estado Juventude e Desporto, SEJD, e Instituto Português Desporto e juventude, IPDJ, deveriam privilegiar na sua relação com as organizações desportivas, alvo de contratos programa com financiamento público, as questões associadas com a integridade, especialmente: a obrigatoriedade da necessária certificação institucional prévia (1); do controlo e monitorização subsequentes (2), devidamente suportados pelo enquadramento legal em sede de regime jurídico das organizações desportivas.

Urge, por isso, proceder a reformas urgentes, não só no enquadramento normativo, mas também no funcionamento das ODs, centradas nos pressupostos de democracia, transparência, responsabilidade, integridade e representatividade.

A credibilidade, fator garante do sucesso do setor desportivo, carece de um compromisso, devidamente calendarizado, para incentivar a implementação imediata de reformas estruturais que garantam, no futuro, os mais altos padrões de boa governação e que reflitam um compromisso credível de preservar a essência do desporto.

Isto só é possível se quem financia, estado-tutela, “obrigue” à adoção de princípios fundamentais comuns a todas as organizações, a três níveis fundamentais: princípios de boa governação; de integridade financeira e de combate ao jogo ilegal, sem os quais não são possíveis contratos programa de desenvolvimento desportivo com financiamento público

No que se refere aos princípios subjacentes de boa governação, o reconhecimento, institucional e a verificação, por certificação, de que as ODs:

  1. Executam todas as suas atividades em conformidade com os princípios de integridade, democracia, transparência e com participação ativa de atletas, treinadores, árbitros, dirigentes, em representatividade proporcionada, mas significativa, defendendo os princípios universais da ética desportiva como o fair play, a solidariedade, o respeito pelos direitos humanos, a dignidade, a integridade e a diversidade e a rejeição de qualquer forma de discriminação, como as questões de Gênero, Raça, Inclusão e Diversidade.
  2. Implementam processos eleitorais democráticos e transparentes, com separação de poderes entre as funções de regulação desportiva e comerciais, com monitorização e divulgação de potenciais conflitos de interesse, procedimentos de gestão de risco, paridade de género nos diferentes órgãos de direção e gestão, gestão financeira transparente, responsável com adequada supervisão;
  3. Mantêm uma política de tolerância zero em relação a todas as formas de corrupção e transações financeiras ilegais incluindo, mas não se limitando, a implementação de critérios adequados e processos licitatórios transparentes para a organização de grandes eventos desportivos, venda de direitos de transmissão, acordos de patrocínio e outros acordos comerciais.

No que se refere aos princípios subjacentes à integridade financeira, o reconhecimento, institucional e a verificação, por certificação, de que as ODs:

  1. Implementam sistemas de licenciamento de clubes, atletas a nível nacional e internacional, com critérios financeiros claros e adequados, e mecanismos de supervisão eficazes;
  2. Estabelecem padrões internacionais de integridade financeira, relatórios financeiros apropriados, práticas de auditoria e conformidades, e total transparência na alocação, distribuição, uso e escrutínio de fundos de desenvolvimento desportivo;
  3. Avaliam, regulam e certificam as estruturas de gestão das entidades por si tuteladas, garantindo a existência de uma gestão, por critério ético e profissional, apropriada, evitando a existência de riscos de possível infiltração criminosa, conflitos de interesses e outros danos prejudiciais;
  4. Apoiam o estabelecimento de processos de controlo, auditoria e supervisão, independentes, em todos os programas de desenvolvimento relacionados com o desporto e transações financeiras incluindo, mas não limitado a: taxas de transferência de atletas, agentes e outras comissões de terceiros; venda de direitos comerciais e de patrocínio; aquisição de clubes desportivos, tanto a nível nacional como internacional;

No que se refere aos princípios subjacentes à integridade das apostas desportivas, o reconhecimento, institucional e a verificação, por certificação, que as ODs:

  1. Colaboram ativamente na regulação do mercado de apostas desportivas e comprometem-se a prevenir e combater todas as formas de apostas ilegais, a fim de erradicar a fraude e a manipulação de resultados;
  2. Colaboram ativamente com as entidades reguladoras na proposta de leis e regulamentos necessários, para implementar unidades nacionais de integridade, códigos de conduta sobre as apostas desportivas e políticas robustas de prevenção/educação direcionadas a todos os principais participantes no desporto, em particular os mais vulneráveis;
  3. Apoiam e colaboram ativamente no estabelecimento de uma plataforma independente de controlo de apostas, capaz de fornecer alertas sinalizadores da quebra da integridade desportiva prevenindo práticas corruptas, manipulação potencial de competições desportivas e/ou ilícitas.

É claro que a nova normalidade desportiva depende de agentes desportivos sintonizados com os desafios da modernidade, em estrita convergência com o regime jurídico em vigor. Grande parte, senão a totalidade das preocupações com os princípios da boa governação; da integridade financeira e a integridade das apostas desportivas, estão dependentes na necessária regulamentação em sede do regime jurídico, não das federações desportivas, mas de todas as organizações desportivas ou para-desportivas a montante ou a jusante do sistema desportivo.

Exemplos concretos sem os quais as ODs não procederão a alterações senão em conformidade com estes pressupostos:

  1. A necessária certificação das ODs, como condição sine qua non para o estabelecimento de contratos programa (mais desenvolvimento);
  2. A paridade de género, quer nos órgãos fiscalizadores (assembleia geral), quer nos órgãos de gestão (direção), quer nos órgãos reguladores e autónomos (conselho disciplina, conselho nacional arbitragem, conselho fiscal, Ligas), através de quotas de representatividade feminina;
  3. O aumento da representatividade dos atletas, nas assembleias gerais das ODs, e a presença obrigatória nos órgãos de direção e gestão, com as diferentes categorias de classificação em face do nível e estatuto, cabendo-lhes representar os direitos e interesses dos atletas junto das ODs e demais entidades do sistema desportivo nacional e internacional, com atribuições estatutárias específicas e estrutura orgânica própria, com autonomia na prossecução das atribuições que lhes são reservadas e de apoio financeiro para as suas atividades, em conformidade, aliás, com a aplicação da Regra 28.1.3 da Carta Olímpica.

Em suma, a nova normalidade desportiva reclama urgência na revisão do Regime Jurídico das ODs. Esperemos que a nova tutela do desportivo esteja, também, sensível para o proceder.