Todos concordamos que o Desporto deve contribuir para um clima de pacificação mundial, unindo os povos para além de todas as disputas políticas.

Este facto é tão mais pertinente porquanto vivemos um dos momentos mais inquietantes, pela perigosidade, da nossa era como consequência, também ela dramática, da invasão da Rússia à Ucrânia, com a conivência participativa da Bielorrússia, que levanta uma série de questões que, para além dos contornos jurídicos presentes nas magnas cartas constitucionais, inclusive a Olímpica, nos fazem refletir sobre outros ângulos de análise.

Um olhar preliminar sobre estas questões faz-nos, em tese equacionar: é possível e desejável a neutralidade política no campo desportivo?

Apesar do pretenso apolitismo do Desporto, que engloba o ato desportivo e as suas instituições, este facto não invalida uma análise mais pormenorizada da questão. Se em termos sociais o Desporto organiza a socialização e as bases para perceções ligadas a estratégias para a busca da autonomia individual, politicamente relaciona-se com outras organizações e diferentes esferas de poder.

A génese dos desportos da era moderna emerge de um processo de transformação dos jogos em desportos de elite, nas public schools, destinadas aos filhos da aristocracia inglesa, no final do século XIX, sendo utilizado, a princípio, enquanto instrumento de controlo do tempo dos adolescentes, mas também da qualidade dos mecanismos para assegurar um envolvimento contínuo e total da população operária.

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A internalização do Desporto como fenómeno sociocultural extrapolou os seus objetivos iniciais e ganhou outros contornos e intencionalidades, não só económicos como notadamente políticos. Os mais puristas acreditavam, à data, que as motivações políticas acabariam por prejudicar o Desporto, tendo esta tese assumido relevância crescente, surgindo a posição que nega a influência da política dentro do Desporto, requerendo um código de conduta “neutro”.

Num mundo global onde a hipocrisia é desmascarada diariamente pela voracidade dos factos e acontecimentos, facilmente podemos constatar que a neutralidade do Desporto é uma utopia hipócrita que o corrói, como se podem comprovar as aproximações de organizações e lideranças desportivas com diferentes instâncias do poder, com intuito de conquistar benefícios, assim como o aproveitamento político de factos relevantes em termos desportivos, muitas vezes sem critério e tendo o populismo como norma impulsionadora.

Será que é admissível o estatuto de pseudoneutralidade do e no Desporto, quando se assistem a ligações mais ou menos diretas de alguns dirigentes, e mesmo atletas, com a política e seus atores, e depois se criticam e se castigam atletas por posicionamentos politizados em torno de causas sociais e políticas?

Será que, em suma, a pseudoneutralidade política do e no Desporto, mascarada por burocratas que o utilizam como mecanismo de poder e aproximação a outros poderes, não deixa os reais intérpretes desportivos reféns de um sistema com sérias distorções históricas e políticas, através do uso de elementos de repressão da liberdade de expressão, para se perpetuarem em harmonia com poder político vigente?

É inequívoco, por isso, que o Desporto surgiu num quadro de afirmação com implicações sociais e políticas, e que a atual pretensa pseudoneutralidade é um sofisma revelador de interesses que se assumem além da sua real função.

É não só um facto indesmentível, por um lado, e desejável, por outro, que o Desporto não só se desfaça desta pretensa pseudoneutralidade como se assuma em causas sociais supra desportivas para o qual seja convocado, onde esteja em causa a dignidade e/ou a condição da vida humana.

A pseudoneutralidade, sempre eivada de uma hipocrisia camuflada, é em si mesmo uma posição política, como o são quaisquer decisões que ao arrepio ou contra as magnas cartas constitucionais, assumiram ou uma postura a favor ou contra a participação dos atletas russos e bielorussos nas competições internacionais.

É neste quadro condicionador que surge a questão da (in)justeza das decisões de algumas organizações cúpula reguladoras do Desporto, Federações Internacionais europeias e mundiais de, grosso modo, impedirem a organização de eventos desportivos no território em guerra e de: i) possibilitar o acesso dos desportistas Russos e Bielorussos sem quaisquer constrangimentos a competições continentais; ii) com acesso restrito em posição neutral sem referência a quaisquer símbolos identitários e nacionalistas; ou iii) impossibilitar de todo esta participação, não os convidando ou suspendendo-os.

Os que autorizam a participação, incondicionalmente, estão conscientemente a caucionar, independentemente da avaliação dos contornos políticos e da (in)consciência e/ou inocência dos atletas e demais agentes desportivos, dos países agressores, uma atitude de desrespeito pelas soberanias reconhecidas, e a validação de um nacionalismo beligerante, inaceitáveis em pleno século XXI ou senão, uma conivência de interesses estratégicos, pessoais e ou/organizacionais, de contornos políticos, para com estes países.

Na essência e como postulado máximo diria: é preciso dar um sinal inequívoco a todos que a guerra, NUNCA é aceitável, mas menos ainda quando se baseia num ceifar aleatório de vidas civis sem contornos admissíveis. O Desporto deve contribuir para dar este sinal. Se a fatura for prejudicar um conjunto de agentes desportivos que poderiam participar em competições internacionais e que na génese nada têm que ver com o despoletar da situação, que assim seja.

A guerra comporta sempre mortos em massa. A matança bárbara de seres humanos traz consequências desastrosas. Por isso, torna-se incompreensível à luz dos nossos dias. Todas as guerras e invasões são inaceitáveis e devem ser condenadas. E o Desporto por estar sempre na linha da frente para condenar, agindo, contra todos os que atentam contra a vida Humana.

No quadro das referências axiológicas, é irrefutável o facto de o Desporto transmitir uma série de valores, quer sejam próprios da sociedade em que está inserido ou pré-estabelecidos pelas sociedades antecedentes.

O Desporto atua como “transmissor de cultura, mas também pode e deve ser promotor de valores culturais que se reflitam na sociedade, eliminando alguns comportamentos inadequados: fazer batota, agredir, adotar comportamentos violentos, faltar ao respeito a adversários e árbitros, e promovendo outros valores, como o da integridade intrínseca à própria participação desportiva e a montante da própria competição.

E este é, para mim, um dos cernes determinantes da questão axiológica que reside na resposta a duas questões:

  1. Será que se deve penalizar os atletas e dirigentes desportivos Russos e Bielorussos, pois na generalidade são inocentes, face a um ato inqualificável do seu presidente, apesar de poderem continuar a treinar e quiçá competir?
  2. Ou será que a resposta à questão anterior deve estar subordinada a esta: será que se devem penalizar duplamente os, também inocentes, atletas e dirigentes Ucranianos que por necessidade imperativa de defenderem a sua fronteira, estão incorporados na guerra, sem poderem sequer treinar, quanto mais competir?

É neste patamar de equidade nas condições de participação que se deve colocar também a matriz justificativa da suspensão dos atletas e dirigentes Russos e Bielorussos: o da integridade da competição. São todos inocentes, mas a integridade enquanto valor baseado no critério da equidade determina que enquanto o invasor e o invadido não tiverem as mesmas condições de participação, o invasor deve ser impedido de participar.

Porventura a essência do próprio Desporto fica mais acessível e como tal mais compatível com a contemporaneidade se formos capazes de reavivar os valores fundamentais, que são apanágio do Desporto: a honestidade, a lealdade, a sinceridade, a limpidez de processos, a correção de atitudes, o respeito mútuo entre quem participa na competição desportiva e o respeito inequívoco por regras de condutas cívicas e desportivas por parte de quem é responsável pela orientação desportiva.

Os conflitos que ocorreram após a dissolução da URSS deixaram um rastro de destruição e mortos que pode chegar a 1 milhão. Quem não se recorda da guerra da Bósnia (1992 a 1995), do Kosovo (1998 a 1999), da guerra da Geórgia (2008), ou da guerra da Síria (de 2011 até hoje)? Outros conflitos surgirão. Seja qual for a resposta do Desporto à questão política (da invasão) com contornos sociais evidentes, a caixa de pandora está aberta.

Numa conceção mais funcional, cabe ao Desporto preservar as condições de segurança, organização, e bem-estar de todos os envolvidos, sendo que a acrimónia dos restantes atletas, relativamente aos dos países agressores e do público em geral, geraria condições de desconforto e de potencial risco de escalada de violência, mesmo que injusta, para com os atletas Russos e Bielorrussos.

Se é fácil esta resolução? Não! É de um comprometimento com o quadro valorativo absoluto não rendível a relativismos geoestratégicos. Não há invasores bons e maus, não há guerras boas ou más, não há mortes em guerra boas ou más. Há invasores, há guerras, há mortos, há feridos e há refugiados.

Cabe ao Desporto, no quadro da sua ação e valoração, agir em conformidade. Condenando, arbitrando a possibilidade de participação face aos contornos evidentes, e apoiando os que por imperativo de necessidade precisam do Desporto, para sobreviver, se possível para viver condignamente e, se possível ainda, para continuarem a fazer o que mais amam: Desporto.