Numa altura em que se lança novamente na praça (pouco) pública a questão da despenalização da morte medicamente assistida, urge reflectir sofre a forma e dignidade com que se morre em Portugal.
Quando, em relação ao processo de finitude de vida e consequente morte, num país dito desenvolvido pertencente à União Europeia, a única questão em discussão é a (des)penalização da prática de morte medicamente assistida, vislumbra-se um desconhecimento e ignorância notórios e chocantes sobre a dignidade humana e as verdadeiras necessidades e anseios das pessoas em situação de fim de vida e das suas famílias. Porquê falar da morte como solução, quando se pode oferecer a vida para tal? Porquê não falar em Cuidados Paliativos promotores de vida de qualidade, livre de sofrimento em situações de fim de vida, morte de qualidade na sua verdadeira assunção e falar apenas de um instrumento limitador da vida possível? Porquê não falar e discutir o papel da morte medicamente assistida como um instrumento possível a integrar na prestação de cuidados em fim de vida?
Qualidade de morte é um conceito de difícil definição. As mais recentes meta-análises e revisões sistemáticas definem-na como um processo em que a morte ocorre: livre de sofrimento; livre de dor; na presença de seus entes significativos (por exemplo, família, animais estimação e entes queridos à beira do leito); envolvendo senso de comunidade; com tempo para dizer adeus; após se ter obtido informações claras sobre as opções de tratamento apresentadas no fim de vida; durante o sono e tranquilamente; sem ansiedade ou depressão; desprovida de processos de prolongamento de vida desnecessários e com os rituais de morte preferidos garantidos. Um desejo específico é não sentir falta de ar ou sensação de afogamento no momento da morte. Além disso, não ser um fardo para a família, manter a autonomia, ter dias finais positivos, proteger os outros do luto e ser capaz de tomar decisões de cuidados até os últimos dias antes da morte, foram preferências constantes da maioria das pessoas em fim de vida. (2) Note-se que não está descrita como necessidade expressa pelas pessoas em fim de vida, a possibilidade por optar pela morte assistida, mas sim pela vida assistida de forma a minorar todas as fontes de sofrimento e fomentar a dignidade até ao último momento.
O sistema de saúde tem um papel crítico na facilitação e envolvimento contínuos em ações essenciais que abordam o sofrimento, incluindo desde garantir o manuseamento dos sintomas físicos, até assegurar os recursos interdisciplinares necessários para a abordagem do sofrimento existencial, espiritual, emocional, psicológico e social relacionado com o fim de vida. Estes cuidados estão muito dependentes dos Cuidados Paliativos, reiteradamente menosprezados pelo sistema nacional. Os cuidados centrados nas pessoas, pedra angular dos sistemas de saúde de alta qualidade e dos esforços para garantir a cobertura universal de saúde a nível mundial, têm como premissa satisfazer as necessidades individuais e as dos cuidadores ao longo de toda a sua vida, até ao último segundo. No entanto, tem havido uma falta de atenção constante às questões do fim de vida, que são impactantes para todas as partes envolvidas e que são críticas para melhorar o desempenho do próprio sistema de saúde. A intervenção do sistema tem de assumir um espectro de actuação amplo, orientado para as verdadeiras necessidades das pessoas e famílias e não se pode reduzir a um único e isolado acto (por ex. morte medicamente assistida).
Segundo um artigo científico publicado em dezembro 2021, que descreve a analise da qualidade de morte em 81 países do mundo (1), verifica-se que, mesmo nos países que possuem sistemas de saúde com elevados níveis de qualidade, não se conseguem cumprir todos os aspetos dos cuidados de fim de vida que são definidos como importantes para as pessoas com doença avançada e para os seus cuidadores. A maioria das pessoas em fim de vida, independentemente do país e políticas de saúde em vigor, morre com dor e depois de experimentar sofrimento intenso relacionado com doença, não morre no seu local de escolha, morre sob sofrimento psicológico significativo e, antes da morte, muitas vezes expressa arrependimento sobre a forma como o último período da sua vida decorreu. Esta conclusão é independente da prática da morte medicamente assistida nos países estudados, não tendo os resultados sido melhores nos países onde se aplica (Canadá, Luxemburgo, Espanha, Nova Zelândia, Países baixos, estado Victoria na Austrália). Este estudo da qualidade de morte, baseou-se em vários parâmetros definidos e expressos pelas pessoas em fim de vida, tidos como essenciais para o seu bem estar e dignidade.
Concluiu-se, no dito estudo, que Portugal ocupa o 7º lugar a contar do fim (total de 81 países) na avaliação da qualidade de morte, atrás de países como Gana ou Quénia. O melhor país neste ranking é o Reino Unido, onde não está implementada a despenalização da morte medicamente assistida e onde as políticas dirigidas à prestação de cuidados paliativos (de que é pioneiro), têm um papel fulcral nos cuidados no fim de vida.
Os especialistas descreveram vários fatores positivos e negativos, como influentes do nível de qualidade de morte obtido pelos respectivos países. Os fatores assinalados como contribuintes positivos para o nível de qualidade de morte nos países, incluíram: acesso ininterrupto e adequado a opioides e outros medicamentos essenciais para aliviar o sofrimento grave no final de vida; políticas baseadas em dados concretos e orientadas para a equidade e investimentos em cuidados paliativos a nível nacional; prestação de cuidados personalizados, centrados na pessoa e integrados; direito legislado a uma cobertura universal de saúde financiada pelo estado que garanta o acesso gratuito ou a baixo custo a serviços paliativos e de fim de vida, incluindo serviços comunitários e domiciliários; mecanismos regulatórios institucionalizados e supervisão governamental para garantir padrões de qualidade; educação e formação obrigatória em cuidados paliativos baseados em competências para clínicos e outros profissionais de saúde, aliados, para se formarem equipas de cuidados de saúde interdisciplinares altamente qualificadas para gerir pessoas com doenças que limitam a vida; existência de comunidades compassivas que complementam os serviços formais de cuidados de fim de vida, de forma a melhorar a qualidade de vida das pessoas e suas famílias; oportunidades de investigação e atividades para gerar as provas necessárias para o desenvolvimento dos cuidados paliativos.
Os factores negativos identificados pelos diferentes países como contribuintes para o nível de qualidade de morte que alcançaram, foram: falta de reconhecimento de que os cuidados de fim de vida são um direito humano; ausência de uma estratégia nacional para os cuidados paliativos/não fazer dos cuidados paliativos uma prioridade a nível nacional; integração limitada ou inexistente dos cuidados paliativos no sistema de saúde mais alargado; falta de investimento em cuidados de fim de vida, conduzindo a escassez de recursos humanos (falta de especialistas em cuidados paliativos); deficiências no acesso a opiáceos; falta de instalações específicas para as pessoas em fim de vida e acesso limitado ou nulo a cuidados paliativos e psicossociais domiciliários; falta de formação generalista ou especializada em cuidados paliativos; falta de conhecimento e sensibilização do público para a disponibilidade de serviços de cuidados paliativos; comunicação fraca ou limitada com pessoas em fim de vida e familiares sobre as opções de cuidados; falta de autonomia da pessoa em fim de vida para tomar decisões; falta de reconhecimento dos fatores culturais associados à morte.
Todos os factores identificados como positivos para a qualidade de morte em pessoas em fim de vida pelos países abordados, são omissos ou muito escassos em Portugal, sendo os negativos transversais a todos os níveis de cuidados de saúde nacionais. Não deveria ser este o foco de discussão?
Nasce-se bem, vive-se na média, mas morre-se mal em Portugal!
A contribuição de uma intervenção fortuita como a morte medicamente assistida, de forma isolada, desintegrada e desraizada no fim de vida de pessoa com doença avançada, progressiva, incurável e geradora de sofrimento tão complexo, tão impactante, tão multidimensional, tão envolvente, tão individual e de todos em simultâneo, e da sua família, em pouco contribuirá para resolver este problema. Podendo fazer parte de uma política integrada de cuidados de fim de vida, não se reduz a defini-la. Urge olhar com seriedade para o fim de vida e morte das pessoas, destino que caberá invariavelmente a todos! Urge desenvolver políticas de saúde integradoras e contínuas, que promovam e incentivem verdadeiramente o desenvolvimento dos Cuidados Paliativos em Portugal, para que deixem de ser um rol de portarias e vontades e passem a realidades prementes. Urge morrer bem em Portugal!