Numa época em que se discute, abundantemente, a descentralização de competências e serviços, há uma outra palavra que deveria merecer alguma reflexão: a deslocalização.
Entendida enquanto opção política de instalar um ou vários serviços públicos, de âmbito nacional, em localidades situadas fora da capital do país, a deslocalização surge associada aos princípios constitucionais de desburocratização da administração e de aproximação dos serviços às populações.
Durante as últimas décadas assistimos a algumas tentativas infrutíferas de deslocalizar serviços para fora da capital do país. Mas a verdade é que para empresários, autarcas ou outros agentes, são visíveis as dificuldades existentes em alcançar uma decisão sobre um determinado processo sem que se desloquem a Lisboa.
Este insucesso fez com que a Comissão Independente para a Descentralização, no seu relatório final, concluísse que “o patamar da decisão encontra-se em Lisboa e isto faz toda a diferença. (…) E acrescentou que “a desconcentração e a deslocalização têm uma vertente democrática muito importante, a aproximação dos serviços e da decisão às populações, e promove a democracia, a transparência e a participação das pessoas.”
Em abono da verdade, há que dizer que o Governo, através do Programa de Valorização do Interior, definiu, quanto à abertura de novos serviços ou organismos públicos, a necessidade de se reforçar os mecanismos de transferência destes para o interior, criando um quadro regulamentar próprio à sua instalação.
Contudo, o proclamado quadro regulamentar não se conhece e, por conseguinte, não se percebem os critérios que têm sido adoptados na decisão das localidades que recebem a instalação desses serviços ou organismos.
Abstendo-me de tratar o caso da deslocalização do Infarmed – Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde — de Lisboa para o Porto, que me parece ter sido uma precipitação pueril do Governo, não posso deixar de questionar os critérios de escolha das localidades das novas entidades entretanto criadas.
Em primeiro lugar, vejamos o caso da Autoridade para a Prevenção e o Combate à Violência no Desporto (APCVD), organismo da administração central do Estado. Foi decidido sedeá-la fora dos grandes centros urbanos, tendo a escolha recaído sobre a cidade de Viseu, numa lógica de valorização e de dinamização do território. E nada mais se sabe sobre os critérios desta escolha, o que até pode levar os mais maldosos a sugerir que Viseu foi escolha por se tratar da terra natal do Secretário de Estado da Juventude e do Desporto.
Em segundo lugar, vejamos os casos das tentativas de deslocalização dos gabinetes de membros do Governo. Parte da Secretaria de Estado da Valorização do Interior foi instalada em Bragança, terra da Secretária de Estado. Esta Secretaria de Estado havia sido instalada, no governo anterior, em Castelo Branco, localidade à qual, neste Governo, lhe coube em sorte a Secretaria de Estado da Conservação da Natureza, das Florestas e do Ordenamento do Território, titulada por um Secretário de Estado de Proença-a-Nova. Finalmente, a Secretaria de Estado da Acção Social foi criada com sede na Guarda, terra da Secretária de Estado. Acrescente-se que todas estas estruturas governamentais manterão gabinetes em Lisboa, nos respetivos ministérios. Ora, para estas deslocalizações apenas tivemos o curto argumento de execução de uma política de maior proximidade e de promoção da coesão territorial. Nada mais.
Por último, vejamos ainda o caso da Entidade para a Transparência, aprovada pela Lei Orgânica n.º 4/2019, de 13 de setembro e que consiste num órgão independente, que funciona junto do Tribunal Constitucional e tem como atribuição a apreciação e fiscalização da declaração única de rendimentos, património e interesses dos titulares de cargos políticos e altos cargos públicos. A lei referida anteriormente apenas dispõe, no seu artigo 4.º, que compete ao Governo disponibilizar as instalações para a Entidade para a Transparência no primeiro semestre de 2020, preferencialmente fora das Áreas Metropolitanas de Lisboa e do Porto. No entanto, já surgiram notícias várias dando conta de que a localidade que vai receber a futura Entidade para a Transparência será uma de duas: Coimbra ou Aveiro. Pelo racional anterior ficamos, automaticamente, a saber que o presidente desta entidade será de Coimbra ou Aveiro.
Esta falta de critérios conhecidos e públicos, bem como de um processo de seleção transparente, colocam dúvidas às opções tomadas e ao verdadeiro ratio destas deslocalizações. O que diria o Governo português se, por exemplo, a definição das localidades das Agências Europeias Especializadas obedecesse a este grau de discricionariedade?
Processos deste género deveriam ser universais, possibilitando a todos os Municípios a oportunidade de, querendo, formularem a sua candidatura para a instalação desses serviços ou organismos no seu território. E deveriam ter a forma de procedimentos concursais, com um júri, critérios, indicadores e dimensões de análise claramente definidos (ex.: instalações, integração social das famílias, garantia de prestação/continuidade de funcionamento, dispersão geográfica, acessibilidades).
Não o sendo, estamos no âmbito de decisões discricionárias, sem fundamento nem racional conhecido, que levantam a suspeição e a desconfiança sobre estas decisões. E a dúvida é corrosiva.