Nunca gostei do Marcelo comentador, que sempre achei um intérprete da política na versão jogo para mentirosos, cínicos, oportunistas e treteiros sortidos; do intelectual, a quem nunca ouvi senão banalidades consensuais, fosse sobre literatura, artes plásticas, história ou qualquer outra área da cultura; do político que na sua família, isto é, na versão lusa de uma imaginária social-democracia nórdica, foi um líder tíbio e passageiro; do professor, que nunca conheci e de quem os ex-alunos não dizem senão bem, mas que não deixou doutrina nem fez escola; e do Presidente, que transformou a função numa barraca de feira popular. E, pior, que em conjugação com um líder de governo do mais demagogo, sonso e medíocre que o PS já produziu (não, não excluo Sócrates, a quem nunca ocorreria trazer comunistas para a respeitabilidade da governação) reforçou o edifício de uma sociedade de eunucos constituída por um aglomerado de dependentes como nunca do Estado. Tudo isto com um pano de fundo de uma comunicação social atenta, veneradora, respeitadora, obrigada, estrelada por uma constelação de avençados do regime, inanes, cansados, timoratos – socialistas, em suma, por preguiça ou convicção.

Este homem, porém, foi eleito para ser, na expressão pomposa mas nem por isso menos verdadeira constitucional e legalmente, o mais alto magistrado da Nação.

O mais alto magistrado entendeu “criticar” a DGS por, a cinco dias da realização da Festa do Avante, não ter ainda divulgado o parecer com as regras sanitárias para o evento.

Entendeu bem, ainda que fosse mais expedito, e mais respeitador da cadeia hierárquica, significar tal preocupação ao primeiro-ministro, ou directamente à ministra da Saúde com conhecimento ao infeliz que a escolheu.

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E como a tal DGS é apenas um serviço do Estado, não apenas o lembrete não deveria ser necessário como as regras que estabelece (ilegais umas; estúpidas outras; contraditórias muitas; e inacreditavelmente minuciosas e incumpríveis grande parte, abrindo a porta ao abuso das polícias e ao atropelo de direitos constitucionalmente garantidos) ganhariam em ser publicitadas o mais rapidamente possível.

Mas não. Os relatórios que a Direcção-Geral da Saúde produz são como os da sua antecessora de Segurança: secretos – acha ela.

Daí que tivesse “respondido” ao Presidente da República, não revelando as medidas pedidas ao PCP. Diz que cabe aos comunistas fazê-lo.

Entretanto, o parecer foi divulgado porque, pasmados ficamos, o PCP autorizou que fosse. Não o fui, nem vou, compulsar, porque a minha vida não chegará para ler tudo o que desejaria e me faz falta, não me sobra o tempo para perder com lixo.

Está tudo errado nesta história. Por partes:

  1. O Presidente não deve dirigir-se directamente a um serviço público. Se o fizer, porém, o que esse serviço tem a fazer (sendo a exigência, como é, legítima, assentando na negação de um secretismo inadmissível, por não ter a ver nem com segredos de Estado, nem reserva de vidas privadas, nem nenhuma razão atendível) é obedecer;
  2. Se houver uma reacção política do Governo, esta cabe ao PM, ou ao ministro da pasta com conhecimento do PM, não a um funcionário;
  3. A reacção do Governo só pode advir de o Presidente o estar a pisar nas suas competências próprias. O que aqui não tem cabimento porque o abuso não consiste em serem divulgados pareceres, mas em ocultá-los – o Presidente pode e deve exigir transparência na vida pública;
  4. Pessoas ingénuas julgarão decerto que a ofensa dirigida a Marcelo não é grave – quem não se dá ao respeito não o merece. Sucede porém que Marcelo, como o timoneiro de Pessoa, é mais do que ele. Donde, os verdadeiros ofendidos somos nós, mesmo que a maioria das pessoas assim não o ache ou entenda;
  5. A reacção da DGS teve, ou não, cobertura da ministra. Se teve, deve a ministra ser demitida; se não teve, deve ser demitida a Directora-Geral (o que, incidentalmente, seria um inesperado benefício, a dra. Graça é a avó que ninguém merece ter).

Vai haver consequências dramáticas, para nos entretermos na rentrée? Acho que não: Marcelo emitirá uns recados crípticos ou insossos se lhe parecer que isso lhe reforça a popularidade; Costa dirá umas coisas, simpáticas ou desagradáveis consoante lhe dê mais jeito para garantir o apoio do PCP para o Orçamento; a Festa será exemplar, para gáudio dos milhares que lá vão encher os cofres, uns por militância, outros porque acham que ajudar o partido, não sendo comunista, evidencia uma grande abertura de espírito, e a maior parte porque o que quer é barulho, pó e concertos de piolhosos, drogados e baladeiros; se as coisas azedarem, a dra. Graça, que de todo o modo é um fusível barato, pode ser queimada, para não dizer a ministra Marta, que é tão difícil de substituir como um guardanapo sujo; e a Covid pode até crescer em contágios, que não será líquido que seja por causa do evento e, se for, pode até acontecer que os comunistas lembrem a verdade que a imprensa diligentemente ignora, isto é, que ela é um tigre de papel – ameaça muito e mata pouco.

Donde, fica um Governo sem dignidade, uma administração pública sem respeito, uma opinião pública tolhida de medo de um fantasma e um Presidente sem auctoritas.

Nada de novo.