Quis odiar-te durante muito tempo. Não tinhas o direito de ganhar ao meu herói. Ninguém tinha o direito de lhe ganhar, muito menos tu que o venceste por vinte e quatro vezes. E que feio eras. Tinhas muitos músculos. Eras demasiado grande para o campo. Batias na bola com a mão esquerda. Jogavas com uma raquete babolat. A mesma marca da minha raquete. Uma raquete feia. Tinhas uma juba à surfista, mexias nas cuecas e no rabo durante os jogos, eras obcecado com a arrumação das águas, não podias pisar as linhas quando mudavas de campo. Eras esquisito. Feio. Mas acima de tudo criminoso por ousares derrotar Deus.
Primeiro só lhe ganhavas no pó de tijolo (esqueçamos Miami), esse terreno que na minha escala figura em segundo plano, onde a cor do solo se confunde com a bola de ténis. Depois bateste-o em Wimbledon. 2008. Bem que no ano anterior já tinhas ameaçado… Como um ladrão roubaste a coroa ao rei e Deus senhor. Deviam ter-te prendido logo ali. Se dependesse de mim terias sido banido do ténis. E que boa forma de encerrar a tua carreira: com Wimbledon no bolso e aquela que foi a melhor final da modalidade. “Foi o melhor jogo que alguma vez vi”, atirou McEnroe em jeito de consolação para um tristíssimo Federer.
Indiferente aos teus crimes, sorrias. Sorrias de uma forma pura, sem truques nem vigarices. Mas tinha de haver algum truque! Não era possível que travasses Deus no seu panteão. Redobrei a minha atenção e vi-te deslizar pelo campo, correr com o vento, saltar como uma gazela, desferir os teus famosos banana shots. E quando nada resultava, quando as pancadas não saíam, lutavas desalmadamente, agarravas-te de unhas e dentes aos sets como se abdicar de um ponto fosse sinónimo de desistir da vida.
Depois ouvi dizer que nunca tinhas partido uma raquete, que eras humilde, que tinhas vergonha da fama, que jogaste uma vez em miúdo um torneio com uma raquete partida e que só percebeste quando o teu tio te chamou a atenção, tão habituado estavas a culpar-te a ti mesmo pelos pontos perdidos. Nunca te ocorrera culpar algo mais do que a tua alma.
De tanta resiliência que demonstraste – essa palavra sempre associada a ti a tal ponto que já enjoa – superaste o meu antagonismo. Cansaste-me. Conquistaste-me. Abri mão do meu ódio. Nas tréguas que cavaste com o ímpeto com que apanhavas bolas impossíveis, vi-te como és: imperfeito na tua humanidade, colado a cuspo após apendicites, lesões no tornozelo, joelho, anca e um famoso pé que degenera há quase vinte anos. Foste o soldado que enviámos para combater no Olimpo. Nunca resmungaste, nunca baixaste a cabeça. Trataste sempre a derrota com a mesma graciosisdade com que encaraste a vitória. A besta que nunca foras deu lugar ao cavalheiro.
Eis então que aprendi a adorar odiar-te. Porque a verdade é que todos os heróis precisam de um grande vilão, de um arqui-inimigo que os esvazie e que ilumine aquela fibra celestial, aquele bocado de tecido inoxidável que vimos no teu espírito enquanto digladiavas os adversários até ao último sopro (como não falar do tamanho do teu espírito, Rafa?). Foste gigante à tua maneira. Foste o Joker do meu Batman, os Celtics dos meus Lakers, os All Blacks dos meus Springboks, o calcanhar do meu Aquiles. O Rafael Nadal do meu Roger Federer.