Passou-se a noite eleitoral, e percebeu-se, evidentemente, que o verdadeiro vencedor foi o Chega, um partido cuja representação parlamentar cresceu em 38 mandatos. Um partido fluído ideologicamente dada a clara ausência de ideologia, pelo que se testemunha nas 174 páginas de programa eleitoral.

Um programa desta vez maior, até para contrapor às frugais nove páginas do documento de 2022. Depois de ter crescido 165 páginas, a tentativa de chegar a uma neblina ideológica com o intuito de agradar a todos é evidente.  “Criar uma contribuição extraordinária temporária sobre o sector bancário, aplicável aos lucros excedentários apurados nos períodos de tributação para efeitos do IRC que se iniciem nos anos de 2024 e 2025 e manter a Contribuição do Sector Bancário já existente e aumentá-la em 10%.”  Um “programa” que se dizia liberal ou até mesmo libertário como o de 2022 defende, agora, uma taxa extraordinária para bancos e gasolineiras face aos lucros juntando-se assim à CDU e ao BE.

Ainda à semelhança do BE propõe que o salário mínimo, em dois anos, atinja os mil euros. Um partido “liberal”, como se auto intitula, a querer aumentar salários por decreto?

Nada de novo.  A fórmula já nos tinha sido apresentada pela onda populista europeia.  Primeiro ganha-se notoriedade com discursos polémicos, nostálgicos e fáceis, e depois avança-se para um discurso mais moderado. Aconteceu com Giorgia Meloni em Itália, Geert Wilders nos Países Baixos e está a acontecer em Portugal com André Ventura.

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O Chega arranca feroz, com uma proposta de castração química para os pedófilos e violadores, um tema disruptivo, polémico, cumprindo o propósito viral, e que hoje ocupa 20 palavrinhas do seu programa eleitoral. Deixou de ser uma das bandeiras do partido. Perdiam-se votos.

Voltemos às questões económicas e aos exemplos europeus. Meloni primeira-ministra italiana apresentou uma proposta de taxação dos bancos, semelhante à do partido Chega. Com uma diferença, foi executada. As ações dos bancos registaram, obviamente, quedas generosas, obrigando o governo a recuar.

A questão é, André Ventura tem conhecimento disto? Sabe que é, absolutamente, irresponsável taxar a banca desta maneira?! Porque é que insiste então? Ventura, o intrépido justiceiro. De Sherwood a Mem Martins, ninguém, nada e nenhuma noção o parará.

Citando o manifesto político do partido, o Chega “nasceu para reduzir o Estado às suas funções mínimas essenciais, com uma redução drástica da sua asfixiante presença na vida da República”. Em que é que ficamos?  Tomemos apenas como exemplo os 3.2 mil milhões gastos na reestruturação da TAP: tal como o PS, BE e CDU, Ventura não se opôs.

Esta despesa daria para pagar 16 vezes os apoios às forças de segurança que Ventura diz defender. A labiríntica e incoerente retórica de André Ventura vem à superfície. Nas 174 páginas, o sector privado aparece reiteradamente colado ao setor público, em rota de colisão com o suposto princípio orientador e fundador do partido.

Apresenta-nos reformas fantasiosas não conseguindo demonstrar-nos como pagar ou mesmo como pô-las em prática. O partido que queria diminuir a intervenção do Estado na vida das pessoas, parece agora querer asfixiá-las em restrições, burocracias e, inevitavelmente, impostos. O Chega está a tentar distanciar-se de todos os partidos, afirmando-se como “antissistema”, mas parece conseguir ir ao encontro das ideias de todos os polos políticos.

É uma tentativa de catch all desastrosa. Um programa que quer agradar a todos e de qualquer maneira. Palavras falaciosas, promessas irresponsáveis, discursos de esperança (vã). Cheio de dúvidas com uma única certeza, a de uma banca rota pelos 9% extra do PIB que o Chega não diz como pagar. Faz-nos lembrar alguém; é pena que o Sócrates Português tenha sido tão medíocre, porque o original saberia como lutar contra a demagogia deste sofista.