Apercebi-me de que o homem tem uma tendência obsessiva pela classificação de tudo o que o rodeia.

A primeira vez que suspeitei disso, foi quando tive de decorar o sistema taxonómico de Lineu. À época, fi-lo com o único propósito de ter boa nota em Biologia e socorri-me de uma mnemónica que ainda hoje ecoa na minha cabeça: “Rainha Filomena Casou-se por Ordem da Família do General Especial”. Esta vigarice benigna foi suficiente para não mais esquecer que o topo da hierarquia é ocupado pelos reinos, que se subdividem em filos e que, sucessivamente, se fracionam, por ordem decrescente, em classes, ordens, famílias, géneros e, por fim, espécies. Hoje, o estudo do botânico sueco foi revisitado e ampliado, o que não surpreende, já que não vivemos sem o insaciável vício de categorizar. Basta que saiamos de casa e nos cruzemos com alguém que apenas foi despejar o lixo para este, sem ter culpa de nada, ser classificado como conhecido ou desconhecido. Se tiver um pijama vestido, em princípio, não tem noção. Se tiver, tem noção. Se separar o lixo, é civilizado. Se não separar, é semisselvagem.

Utilizamos à exaustão esta muleta cognitiva de organização do conhecimento e somos, nós próprios, alvo dela desde tenra idade, quando nos qualificam como tranquilos, birrentos, teimosos ou mimados. E, ainda antes de sermos alguma coisa, já alguém, por nós, classificou o nosso tipo sanguíneo.

Quando começamos a estudar, pelos óculos dos nossos pais, podemos ser bons alunos ou ter jeito para outras coisas. Se tivermos a sorte de aprender a ler poesia, saberemos reconhecer poemas líricos, narrativos e dramáticos.

Quando deixamos de ouvir sons e passamos a escutá-los, percebemos que o material sonoro usado pela música surge como melodia, ergue-se como harmonia e baloiça como ritmo, e que o som assume vestes de intensidade, de timbre, de altura e de duração, que se combinam para criar textura, estilo e estrutura.

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E, se tivermos a sorte de conseguir olhar para a pintura e vê-la, conseguiremos encontrar traços, mais ou menos carregados, de impressionismo, de surrealismo, de realismo, de modernismo, de cubismo, por aí fora.

Se chegarmos a parar para pensar em temas existencialistas, daremos por nós a distinguir quem tem fé de quem não tem. Quem é livre de quem não é. Mas também saberemos a diferença entre um empregado de mesa com uma postura institucional e um empregado de mesa chico-esperto.

Se tivermos a tentação de nos querermos identificar com pensamentos de esquerda ou de direita, cairemos na necessidade de calcorrear as suas influências distantes, submergindo-nos no Republicanismo, no Liberalismo e no Conservadorismo, sem esquecer, porque menos distantes, o Fascismo, o Nazismo, o Socialismo, o Comunismo, o Anarquismo e a Social Democracia. Contudo, para um sôfrego classificador, a estrada não termina aí e sentir-se-á convidado a afundar-se nos pântanos do Neoliberalismo, do Liberalismo Igualitário, da Nova Esquerda, da Nova Direita e do Neossocialismo.

Eduardo Lourenço pensou e escreveu sobre quase todos estes temas. Classificou muito, mas sem amarras.

Como, também eu, não sei viver sem classificar, se em 2020 tivesse de identificar pensadores em Portugal, não deixaria de identificar duas espécies: “Eduardo Lourenço” e “Outros”.