Lembra-se de 1999? A minha memória é fraca, mas sei que em 1999 ainda circulavam escudos e nos habituávamos com dificuldade ao euro, com uma calculadora no bolso a que chamavam conversor de euros. Lembro-me dos aumentos de preços que resultaram da introdução do euro. Nesse ano, acabava eu o 4º ano da faculdade e antecipava já como seria o estágio voluntário num hospital em Barcelona. Estava muito ansioso porque sabia que aquela era a minha profissão de sonho e que Barcelona era uma das cidades do mundo com os melhores farmacêuticos hospitalares. Depois desse estágio, pago pelos generosos bolsos dos meus pais, bastariam mais dois anos de curso para começar a fazer aquilo que queria fazer para o resto da minha vida.

Em 1999, António Guterres era Primeiro-Ministro e José Sócrates era ainda apenas Ministro do Ambiente. Timor tinha um vislumbre da sua libertação enquanto nos uníamos todos para exigir o fim do massacre deste país irmão que abandonáramos à sua sorte 24 anos antes. A travessia ferroviária sobre o Tejo era finalmente uma realidade e João Garcia seria o primeiro português a chegar ao topo do Evereste. Enquanto isso, Macau passava para administração chinesa e os cientistas concluíam finalmente a sequenciação do genoma humano. Todos andávamos expectantes em relação ao “bug do milénio”. Na Rússia, Putin era eleito Primeiro-ministro e Boris Yeltsin renunciaria ao cargo de presidente alguns meses depois.

Sabíamos tudo isto vendo a televisão quase cúbica que ocupava um canto substancial da nossa sala. E nela víamos a actualidade cultural no “Acontece”, com Carlos Pinto Coelho, ou o “Cinco Noites, Cinco Filmes”. Os nossos avós comoviam-se com o “Ponto de Encontro”, apresentado por Henrique Mendes, enquanto nós revirávamos os olhos. As crianças preferiam o “Batatoon” ou o “Buéréré“. Quem não tivesse antena parabólica, no máximo tinha quatro canais, mas eu sentia-me um privilegiado, já que nas férias só tinha um canal, que era a RTP Madeira.

Em 1999, podíamos consultar as páginas amarelas, gravar filmes da televisão em cassetes VHS ou ir ao clube de vídeo alugar um filme. Podíamos tirar fotografias com rolo fotográfico e ver as fotografias apenas 24 horas depois de as deixarmos para revelar. Era incrível! Podíamos receber uma mensagem no beeper e responder por fax. Os mais endinheirados, tinham PDAs e sabiam que o futuro estava ali, naqueles aparelhinhos com um ecrã táctil para o qual bastava usar um instrumento de plástico próprio. Os mapas em papel, de uso generalizado, em breve poderiam ser descarregados para o PDA e teríamos toda a Europa na palma da nossa mão. Sentíamo-nos avançados e insuperáveis como se tivéssemos chegado ao pináculo do desenvolvimento tecnológico.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

E quando nos sentávamos ao computador, enquanto aguardávamos alguns minutos que a ligação se estabelecesse, para não ouvirmos o ruído que a ligação 56k fazia, podíamos ouvir música no nosso discman ou, se fôssemos mesmo modernos, no nosso insuperável leitor de MP3. Já não precisávamos de comprar CDs, bastava ir ao Napster sacar os sucessos, foleiros ou não, da altura: “Mambo Number 5”, do Lou Bega, “Believe”, da Cher, “Fly Away”, do Lenny Kravitz, “Livin’ la Vida Loca”, de Ricky Martin, ou “Baby One More Time”, de Britney Spears. Sabíamos que os walkmans tinham os dias contados, mas ainda sabíamos rebobinar uma cassete com uma caneta bic. Imaginávamos que as cassetes ficariam apenas para os atendedores de chamadas, já que eram um tal sinal de modernidade que era impossível que desaparecessem. Depois de termos ligação no nosso modem, como os homens do futuro, falávamos no MSN messenger, embora ainda tivéssemos amigos com quem falávamos no mIRC. E se os nossos amigos nos enviavam ficheiros pelo mail do yahoo, podíamos gravá-los numa disquete. Se o ficheiro fosse pequeno, bastava esperar alguns minutos. Se gostássemos muito de alguma imagem que encontrássemos através do estupendo Altavista, e se já tivéssemos substituído a nossa impressora de agulhas por uma moderníssima impressora de jacto de tinta, conseguíamos imprimi-la. Se juntássemos muitos ficheiros, podíamos guardá-los todos num CD-ROM e tínhamos dificuldade em encher um disco inteiro.

Enfim, eram tempos extraordinários… Mas fico a pensar se já não seria de se actualizar a tabela salarial dos farmacêuticos hospitalares do SNS, cuja última actualização é precisamente de 1999. Parece mentira, mas não é. À parte das actualizações da inflação que, como sabemos, sempre ficaram aquém da dita, a tabela em si, é de 1999. Esta não é a única reivindicação dos farmacêuticos do SNS, mas é um facto incontornável e significativo.

Em resposta à anterior greve dos farmacêuticos do SNS, a sua segunda greve desde sempre, Manuel Pizarro respondeu que foi o governo PS que criou a carreira farmacêutica. Esqueceu-se foi de referir que foi como resposta à pressão exercida durante décadas pelos farmacêuticos e que alguns anos antes a sua intenção era extinguir a profissão. Também não achou oportuno explicar porque foi a carreira criada em 2017 e os primeiros residentes entraram apenas em 2023 para a sua formação de 4 anos que permite o acesso à carreira. Compreendo que se “esqueça” de referir esse facto, como compreendo que não saiba como explicar porque foram incluídos na base da carreira farmacêuticos com 20 ou 30 anos de experiência. O tempo, para estes farmacêuticos não contou. E não falo dos “6 anos, 6 meses e 23 dias” de não progressão dos professores durante a crise financeira gerida pelo Governo de Passos Coelho. Falo de décadas de experiência profissional e aposta na formação individual dos farmacêuticos. Mais: não foi uma pequena maioria que foi colocada na base da carreira. Foram cerca de 80% dos farmacêuticos do SNS.

Além disto, os farmacêuticos vêem-se impedidos de progredir na carreira, num nó que só Kafka poderia criar com tanta originalidade, já que se exige que tenham experiência de 6 anos numa categoria que não existia há 6 anos. Como se não bastasse, o Governo de António Costa criou um imbróglio legislativo que, na prática, bloqueia a titulação conjunta de especialistas pela Ordem dos Farmacêuticos e Ministério da Saúde, uma medida também criada por este Governo por pressão dos farmacêuticos que pretendiam um processo sério e credível de titulação dos seus especialistas.

Ora, sem farmacêuticos no SNS, não há medicamentos nem se garante o seu uso seguro e eficaz. As inúmeras tarefas que desempenhamos são invisíveis para o público em geral, mas não é por isso que deixam de ser de importância capital. Principalmente num contexto em que as terapêuticas são cada vez mais complexas e onerosas. Estamos ao lado de médicos, enfermeiros e muitos outros profissionais de saúde na luta por condições que permitam reter os melhores profissionais do SNS. O papel de todos é imprescindível a um SNS que preste cuidados de saúde de elevada qualidade a todos os cidadãos.

Por isso, é difícil aceitar que o Governo esteja disposto a negociar com todas as classes profissionais menos com os farmacêuticos. Ou o Governo está interessado em ter um SNS de qualidade ou não está. Seria bom que assumisse o que quer, para que possamos escolher conscientemente nas próximas eleições. Mas os seus actos nos últimos anos só nos fazem acreditar que o Governo não está minimamente interessado em ter um SNS.

Os farmacêuticos e restantes profissionais de saúde estão fartos de conversa da treta. Queremos acções que dignifiquem todos os trabalhadores do SNS. Só assim seremos capazes de servir os portugueses com a nossa profissão que todos escolhemos por termos sentido de missão. Mas por ter feito essa escolha em 1999, não me parece que seja implícito que o vencimento dos farmacêuticos se mantenha exactamente igual até eu me aposentar.

Quem repare nas declarações públicas do Ministro da Saúde, verifica que qualquer problema que lhe seja posto “está a ser analisado” e isso deixa-o “muito tranquilo”. Haja alguém que está tranquilo com o SNS. É que não serão farmacêuticos, nem médicos, nem enfermeiros, nem outros profissionais de saúde, muito menos serão os doentes, os que lhe vão dizer que estão tranquilos com o SNS.