Em 1953, Ray Bradbury publicou uma história na qual relatava uma sociedade ficcionada onde os livros eram proibidos e queimados. Como explicava o autor de Fahrenheit 451, o título do livro pretendia indicar a temperatura de ignição do papel. No mundo distópico de Bradbury, as opiniões próprias eram anti-sociais e o pensamento crítico era suprimido. Questionado sobre o significado de sua obra, Bradbury, um apreciador de livros e de bibliotecas, declarou em entrevistas que Fahrenheit 451 não era apenas um livro sobre as censuras da época da publicação, mas de um alerta que pretendia prevenir um futuro ameaçado pela destruição do interesse pela leitura e pelos livros.

Há uns anos, surgiu uma nova tendência de decoração de dispor os livros com as suas lombadas voltadas para o interior das estantes, de forma a não serem identificados. Como todas as modas de gosto duvidoso, chegou entretanto a Portugal e, como de costume, tarde. A utilização de livros como elemento decorativo não é incomum e alguns são comprados ou encadernados com o intuito de cumprir exclusivamente esse propósito. Nas palavras de Debord, publicadas em 1967, é um traço da nossa época preferir-se “a imagem à coisa, a cópia ao original, a representação à realidade, a aparência ao ser” numa “imensa acumulação de espectáculos” que constituem o reino da imagem.

Como em muitas modas, esta poderá ter surgido dos estúdios de televisão, neste caso com o intuito de evitar a violação de direitos de autor, popularizando-se através de designers de interiores em lares e escritórios. Nos últimos, essa prática pode ser vista ainda como uma tentativa de salvaguardar uma neutralidade receosa de ofender susceptibilidades. O que seria se aparecesse num escritório o Mein Kampf entre centenas de livros adquiridos a peso e que ninguém verificou? Este tipo de preocupação surge com uma naturalidade inquestionada e, se algum princípio se pode ofender, há que o evitar, mesmo que se ofenda a cultura, a que semelhante tendência parece alheia. O melhor, para quem assim pensa, é virar todos os livros ao contrário e não arriscar.

A necessidade de agradar parece agravar uma certa tendência para se aceitar o que parecer mais conveniente a cada momento. Uma mentalidade que tende a mover-se na direcção mais favorável para onde sopra o vento da conjuntura social e da moda efémera. Por vezes, triunfa um certo deslumbramento com a erradicação de tudo o que é diferente, individual ou selecto, a favor do que for mais popular. O Filisteu não se incomoda e mesmo que se incomodasse, como salientava Arendt nos seus escritos: “à mais leve provocação, está disposto a sacrificar tudo”, incluindo valores, a bem da sua segurança profissional e conforto pessoal. Por receio ou indiferença, toda e qualquer moda avança com a sua complacência.

Nas suas reflexões sobre a actualidade, e criticando o pós-modernismo e a cultura pop massificada, Scruton, um conservador, via a cultura como tendo raízes religiosas e ocupando o lugar da fé num mundo descrente como aquele a que o Iluminismo deu lugar, conferindo um sentido à vida e constituindo-se como uma importante base de uma sociedade coesa. Scruton argumentava que a cultura introduz uma sensibilidade que não é “uma fonte de saberes técnicos ou científicos (saber que ou saber como), mas uma fonte de sabedoria prática (saber o que)”, ou virtude. O seu sentido reside numa visão ética que perpetua, e numa ordem que culmina nas nossas emoções. A cultura forma a nossa consciência e sentimentos e orienta-nos a dispor da razão prática para discernir o nosso verdadeiro bem e para escolher os justos meios de o atingir. A indiferença de alguns perante a cultura, louvando o absurdo, parece ser um dos múltiplos sinais de desconstrução da vida mental para os quais Ray Bradbury nos alertava.

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