Permitam-me começar com uma analogia. Quando se compra uma habitação já antiga, é muito frequente decidir-se fazer obras para melhorar as condições de habitabilidade e adaptar os espaços de acordo com novos designs e novos modos de vida. Com naturalidade, acontece serem derrubadas paredes para alargar espaços, serem construídas outras onde não existiam e proceder-se à substituição de todos os apetrechos das cozinhas e casas de banho por outros mais modernos e mais funcionais, por exemplo. Nestas andanças, convém que os proprietários tenham bem presente que o derrube de elementos estruturais tem de ser evitado, sob pena de futura ruína. Não tem qualquer problema tratar-se dos rebocos e pintar-se as paredes, mas não se pode eliminar pilares ou paredes-mestras, a não ser que se arranje uma solução para reforçar e garantir a estrutura do imóvel por outros processos.

Se concordamos que a nova pintura de uma sala não consegue pôr em causa os fundamentos de uma habitação, já no que respeita à escola, as alterações, muito em voga, muito atuais, de alguns procedimentos firmados em séculos de experiência podem bem levar à ruína. Porém, para sermos (ou parecermos) modernos, todos os anos se inventam novos documentos para preencher, se destroem programas curriculares, espremem-se conteúdos, deitam-se paredes abaixo, desprotegem-se vigas-mestras, que a escola é como uma casa antiga, precisa de constante reforma, e a catástrofe, para quem está de fora, leva muitos anos a perceber-se.

A escola, todos sabemos, é uma instituição bastante antiga. Não me refiro aos edifícios escolares, alguns dos quais ainda à espera das necessárias obras de recuperação e modernização, mas sim à escola como organização primordial na transmissão de um vasto conjunto dos conhecimentos mais relevantes, que foram sendo acumulados ao longo da História da humanidade. Há uma boa parcela de conhecimentos que se transmitem, inevitavelmente, em meio familiar, contudo, a capacidade de transmissão por parte da organização escolar ultrapassa-a largamente e, por isso, consideramos imprescindível que as novas gerações a frequentem.

Em Portugal, no último quartel do século passado, as circunstâncias políticas e económicas permitiram, felizmente, o alargamento da frequência escolar a toda a população de jovens, o que aconteceu sobretudo porque se considerou muito valiosa a formação que ali poderiam obter, mas também porque, simultaneamente, foi necessário dar resposta relativamente à guarda das crianças cujos pais trabalham fora de casa, o que abrange a generalidade das famílias. Com esta alteração da organização social, a escola teve de enfrentar fortes embates na estrutura habitual, acolhendo jovens cheios de vontade de aprender a par de outros com essa motivação pouco desenvolvida ou mesmo quase inexistente, para não referir a pequena parcela dos que se sentem completamente contrariados em ambiente escolar.

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Neste longo processo de adaptação, de fermentação razoavelmente silenciosa, foi-se exigindo aos professores consideráveis mudanças na sua praxis, atribuindo-se-lhes novos papéis e, sorrateiramente, foi-se degradando o estatuto do professor, noutros tempos altamente considerado, rebaixando-o ao nível de funcionário administrativo, prestador de variados tipos de serviços às famílias, acumulando ensino, babysitting, tutoria, serviços de psicologia… primeiro em função das orientações emanadas pelo Ministério da Educação e depois pelas circunstâncias sociais resultantes da crescente desestruturação familiar.

Para ilustrar o processo de rebaixamento do estatuto dos professores, menciono um pequeno exemplo, muito concreto, da postura moderna que, sobrevalorizando a igualdade, ajudou a depreciar o professor. A excomunhão dos estrados das salas de aula, que colocavam a secretária do professor numa posição mais alta para garantir a melhor visibilidade e controlo do que se passava na sala de aula. A centralidade do aluno não se podia coadunar com tal organização arquitetónica. Porque será que fenómeno semelhante não aconteceu nos tribunais? Será porque os juízes são mais respeitáveis que os professores?

A revolta dos professores, que, este ano letivo, se tem verificado em ações públicas quase permanentes, algumas de enorme dimensão, não se justifica por qualquer alteração governativa ou por proposta recentemente apresentada por este Ministro da Educação, se bem que a tentativa de municipalização da gestão de uma parte das colocações de professores tenha sido um bom pretexto. O descontentamento generalizado dos docentes já vem de há muitos anos, sobretudo desde 2005, com o congelamento da carreira, que se manteve bloqueada até ao final de 2007, agravado com a desconsideração da então Ministra da Educação, que demonstrou, ad nauseam, enorme desconfiança nas capacidades dos docentes. Essa revolta teve o seu clímax na gigantesca manifestação ocorrida em 8 março de 2008, que fez tremer a presunção da Ministra, obrigando Maria de Lurdes Rodrigues a reverter os asquerosos “portefólios”. Porém, passado pouco tempo, a falência resultante da má gestão “socrática” dos dinheiros públicos obrigou Portugal a uma intervenção externa e, consequentemente, a carreira docente foi novamente congelada no início de 2011. Passados quatro anos, Portugal libertou-se da troika e, através da conspiração geringonçal, mudou de governo, mantendo, contudo, o congelamento da carreira. Nessa época, a ação sindical foi claramente branda com o governo, aliviou as reclamações e deixou-se limitar na ação por interesses partidários associados ao poderzinho que a geringonça lhes distribuía, mostrando-se muito satisfeita, por exemplo, com a eliminação de provas de avaliação externa.

Passaram-se sete anos, que mantiveram António Costa como primeiro-ministro e João Costa como ator principal do Ministério da Educação. As políticas de desconsideração dos professores, com o embuste da recuperação do tempo de serviço congelado, da desconsideração da escola, diminuindo a exigência no ensino e na avaliação, seguem o mesmo rumo desde então, desvalorizam a docência e mantêm-se dependentes da mesma orientação ideológica. Porém, a geringonça eclodiu, as forças políticas que têm enorme influência sindical ficaram desagradadas pelo afastamento das migalhas do poder, a gota a gota do tempo a passar e ninguém a ver isto melhorar provocou as hostes, motivou novas formas de protesto lideradas por uma nova corrente sindical e, em sobressalto, receando a ultrapassagem, logo se empenharam as tradicionais federações sindicais, cuja enorme capacidade de mobilização se juntou à vontade desesperada dos professores em reclamar por mudanças.

O congelamento da carreira docente, que tem sido apresentado como uma das principais bandeiras do descontentamento docente, é uma pequena parte da questão. A maior parte do desespero radica na sensação de falta de respeito que os professores sentem. Cartazes com a palavra RESPEITO têm sido dos mais exibidos em todos os momentos de manifestação. Este sentimento de desrespeito verifica-se tanto relativamente às orientações do seu Ministério, com pedagogias românticas e obsoletas, que empurram os professores para a condição de “caixas registadoras”, atafulhados em papéis e cruzes, em medidas universais e seletivas, bem como em relação às atitudes de muitos jovens, mal-educados, desinteressados, assim como de alguns encarregados de educação.

Para quem não conhece por dentro a vida escolar e para que possa ter alguma ideia de como há encarregados de educação que também contribuem para este desespero profissional, conto-vos dois episódios.

Há muito pouco tempo, numa reunião de departamento, uma colega relatou-nos que tinha convocado uma encarregada de educação para lhe transmitir que o filho estava nas aulas de Matemática sem passar para o caderno diário o que se escrevia no quadro. A mãe respondeu-lhe que estava enganada, que o filho passava tudo, porque era uma criança muito organizada. O desplante de desmentir a professora sobre uma situação que se passa na sala de aula, onde a mãe nunca esteve! Assim, desde esse dia, a professora tem tido o cuidado e a preocupação de, no final de cada aula, ir registar no caderno do menino uma anotação para a encarregada de educação verificar a brancura do papel, sem qualquer registo escrito durante a aula. Não se pense que se trata de um menino pequenino, porque não é o caso, pois é um aluno do 9.º ano de escolaridade.

Outro episódio envolveu um aluno do 10.º ano que mantinha constantemente um comportamento perturbador nas aulas. Chamada a encarregada de educação e exposta a situação, a resposta da senhora foi: «E o que é que eu tenho que ver com isso? Esse problema cabe ao professor resolver, para isso é que lhe pagam.» Gluqx, glutpx, glix – isto é o professor a engolir em seco.

Do comportamento dos alunos vai-se sabendo muito mais, mas, tentando não ser maçador, conto-vos também dois episódios.

Na primeira aula do ano letivo, estava a professora de Inglês a explicar o método de organização das aulas, referindo o material necessário e fazendo o agendamento dos testes, e três meninas no fundo da sala não paravam de “bichanar”, uma delas de costas voltadas para a professora. Chamando-as à atenção, uma delas pergunta: «Ó stora, quanto é que a stora ganha?». «A que propósito vem essa pergunta?» – responde a professora. «É que a minha empregada ganha de certeza mais e nunca me mandou calar.»

Noutro caso, durante uma aula de Matemática, estava um aluno do 11.º ano a recortar pequenos pedaços de uma folha de papel, deixando-os cair para o chão ao lado da sua mesa, quando a professora, tentando evitar maior interrupção da aula e eventual conflito, lhe disse: «Parece que está a divertir-se.» O aluno não respondeu e continuou a fazer exatamente o mesmo. No final da aula, levantou-se para ir para o recreio. «Onde é que o menino vai?» «Já tocou para a saída!», respondeu indignado. «Pois, mas não vai sair sem antes apanhar todos os papelinhos do chão.» – ordenou a professora. «Eu? Em minha casa tenho quem apanhe as minhas coisas do chão, não as vou apanhar aqui!» «Ora, isso é na sua casa. Aqui é a casa de todos nós» – insistiu a professora, não permitindo que saísse da sala sem cumprir a ordem.

São pequenos episódios que podem ajudar a perceber alguma parte do ambiente tóxico que desconsidera os professores. Basta, por exemplo, os alunos percecionarem que o Ministério da Educação desvaloriza as provas de avaliação externa, fingindo que continua a avaliar com provas de aferição cujo resultado não tem qualquer influência para o percurso do aluno, que logo se potencia, enormemente, a desatenção nas aulas e o desleixo. Um professor pedir silêncio e esse pedido ser imediatamente atendido é algo que não ocorre, é coisa do passado.

Todavia, tudo isto é bem manipulado, tudo é prescrito de modo a apontar para o sucesso, seja mascarado, martelado, ou o que seja. Ouve-se dizer à boca cheia que esta é a geração mais bem preparada de sempre (efetivamente é a geração mais escolarizada de sempre) e, à boca pequena, que a esmagadora maioria não sabe qual é a capital da Irlanda, não sabe o que é um pronome, não sabe resolver uma equação de primeiro grau, não sabe quando é que Portugal foi fundado, … Tudo bem pervertido, bem agilizado, como aconteceu com o estudo do IAVE que, após dois anos de confinamento e de ausência de aulas para muitos milhares de alunos, vem dizer que as aprendizagens melhoraram. Se eu fosse o Ricardo Araújo Pereira, diria: Isto é gozar com quem trabalha.

Pois podem aumentar o ordenado dos professores, que fazem muito bem e tem toda a justificação. E devem repor todo o tempo de serviço “congelado”, porque lhes é devido. Mas é necessário muito mais do que isso. A centralidade da revolta não se resolve apenas com mais euros, que são merecidos e necessários. Enquanto se continuar a afundar a dignidade e o prestígio dos professores, tanto da parte do poder político como da parte da restante sociedade, o desespero vai continuar, a ânsia pela reforma vai aumentar, a dificuldade em contratar candidatos vai crescer e a escola pública vai-se deteriorando, vai-se desfazendo aos poucos.