Por ocasião das comemorações dos 50 anos da revolução que pôs fim à velha e trémula ditadura, o nosso Excelentíssimo Senhor Presidente da República Portuguesa veio declarar que Portugal deve pagar pela escravatura e pelo colonialismo.

O Senhor Presidente não disse quando deve ser paga essa indemnização, nem disse quanto deve ser o valor da mesma, mas simplesmente que se deve pagar indemnizações a outros Estados pelo facto de, no passado, ter havido portugueses que, com o consentimento ou apoio expresso ou apenas com o beneplácito dos poderes do Estado, praticaram atos que eram de aceitação generalizada na época em que foram praticados, mas que, atualmente, são considerados crimes ou, no mínimo, atos ilícitos. E esta antijuricidade é, na verdade, independente do facto de já estarem ou não tipificados em letra de lei, pois podem resultar apenas do entendimento generalizado dos direitos constitucionais, mesmo quando se entra em subjetivismos ou no domínio de conceitos completamente indeterminados que a maioria dos portugueses entende como razoáveis.

Depois de digerida e ultrapassada a estupefação, resolvi pôr à consideração da minha consciência e da dos demais portugueses a possibilidade de exigirmos à República Portuguesa mais alguns lotes de indemnizações, por atos praticados no passado, debaixo da chancela do Estado Português.

Dou-vos um exemplo. Decorria a Primeira República, quando a bisavó dos meus filhos mais velhos, com quem ainda pude conviver alguns anos, frequentava a escola primária, no concelho de Olhão. Certamente para corrigir algum comportamento considerado inadequado, a Senhora Professora deu-lhe um violentíssimo puxão de orelhas, na orelha direita. A brutalidade foi tal que lhe provocou a rutura definitiva de ligamentos no pescoço, fazendo com que vivesse toda a sua longa vida com a cabeça de lado. Foi assim que a conheci, foi assim que a vi em fotografias antigas, muito antigas. No entanto, cresceu, casou, trabalhou, pagou impostos, teve filhos, teve netos, bisnetos e trinetos, embora o trauma decorrente daquele ato tão violento nunca pudesse ser reparado. Ninguém saberá que sofrimentos terá arrastado ao longo da vida, que feridas psicológicas terá tido na sua infância e adolescência, que mágoas aguentou pela barbaridade de um ato público que decorreu numa escola pública, sob a alçada do Estado Português. Quantas amarguras passaram para os filhos, netos e bisnetos?

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Dou-vos outro exemplo. Num certo dia do mês de outubro de um ano da década de sessenta, quando eu estava na primeira classe da escola primária, numa escola pública da cidade de Lisboa, no decorrer da escrita insegura de uma redação, o lápis caiu ao chão. A Senhora Professora, D. Celeste, não terá dado conta do ocorrido, pois eu, como era dos mais altos, estava sentado na última carteira da fila junto das janelas. Inocente e imprevidente, levantei-me para apanhar o lápis do chão. A Senhora Professora, ao perceber o movimento da bata branca que me fardava, imediatamente me chamou à sua presença.

«Quem é que lhe deu autorização para se levantar?» – perguntou, em tom sereno, com toda a autoridade que lhe era concedida pelo Estado Português.

«Ninguém, Senhora Professora, mas o meu lápis caiu ao chão.» – balbuciei eu, amedrontado.

«Dê-me cá a sua mão!» – ordenou a Senhora Professora, pegando numa espécie de tábua de madeira bem maciça que era conhecida por “régua”.

A violência a que fui sujeito, pela meia dúzia de reguadas, pelas dúzias de lágrimas sem som que desabaram, ficou-me marcada para sempre. Nunca mais levei reguadas da Senhora Professora, pois fazia sempre todos os exercícios escolares e todos os trabalhos de casa, assumindo a posição de melhor aluno da classe, mas também nunca mais me levantei da carteira sem uma ordem expressa da Senhora Professora. Porém, assisti diariamente à prática reiterada daqueles episódios de violência infantil sobre a generalidade dos alunos que frequentavam a minha classe da escola primária. E todos sabemos que essas práticas de violência infantil se estendiam a todas as salas de aula de Portugal (dispenso, por agora, saber o que acontecia noutros países).

Sabemos que, na época, todos aceitavam que assim se fizesse, que as Senhoras Professoras pudessem aplicar castigos físicos para corrigir comportamentos, com a anuência do Estado Português e a autorização frequentemente expressa dos próprios pais das crianças. «Se ele se portar mal, dê-lhe com força.» – foi uma declaração que ouvi bastas vezes.

Do meu caso, considero que não consigo avaliar todas as consequências traumáticas que aquele episódio pode ter tido para o resto da minha vida. Sou tentado a imaginar que não teve nenhumas, mesmo interrogando-me se terá tido alguma influência na minha paixão em ser professor, mas sei que muitos alunos ficaram severamente traumatizados por práticas escolares violentas, quer física quer psicologicamente. Sobre violência psicológica faço um breve relato do que aconteceu com o meu colega José António, que não queria saber da escola e não tinha qualquer vontade para estudar nem familiares próximos que o estimulassem. No final do segundo ano de escola, “passou”, com a autorização do Ministério da Educação Nacional, da segunda classe novamente para a primeira classe. Quando eu estava na última classe da escola primária, estava ele ainda na primeira. Aos 18 anos, fomos juntos à inspeção para a tropa. Depois disso, vi-o poucas vezes, a última das quais há já muitos anos, muito degradado, a pedir esmola embrulhado num cobertor. Soube que faleceu pouco tempo depois. Terá havido responsabilidade do Estado Português no percurso perturbado que foi a sua breve vida?

Tudo isto eram as práticas da época, admitidas, consentidas, quer pela generalidade dos portugueses, quer pelo poder político, contudo, atualmente, todos aqueles atos são ilícitos e são punidos criminalmente.

Que tal pedirmos à República Portuguesa para que indemnize todos os portugueses, por abusos ou práticas violentas que, no passado, eram admitidas nas escolas públicas mas que agora são crime? Se algum dos portugueses vivos declarar que nunca sofreu qualquer violência no seu percurso escolar, jamais poderá garantir que algum dos seus antepassados não tenha sofrido abusos violentos enquanto criança a frequentar a escola pública.

Que tal começarmos a juntar dinheiro para pagar uma indemnização ao Futuro pelas práticas que hoje são admissíveis, mas que, no futuro, serão severamente penalizadas?

Será que os netos dos atuais professores poderão vir a pedir uma indemnização ao Estado Português pelos prejuízos causados durante e após os anos em que estiveram com a carreira congelada?

Há algumas décadas era crime ser-se homossexual. Atualmente, não é crime, embora, para muitos, ainda seja pecado. Como será daqui a 50 anos? Daqui a 200 anos? Serão criminalizados, post-mortem, todos os que defenderam que deixasse de ser crime?

As atuais práticas que estimulam as operações de conversão sexual em crianças vacilantes, desorientadas, poderão facilmente passar a ser consideradas crime dentro de alguns anos. Quem é que assumirá a responsabilidade pelos futuros pedidos de indemnização?

Atualmente, não se considera crime que haja milhares de alunos sem professor em alguma disciplina durante todo o ano letivo, mas não é absurdo pensar que, daqui a alguns anos, isso seja motivo para pedir indemnizações ao Estado. Poderemos pedir as indemnizações com retroativos?

Quantos portugueses acabam por morrer depois de estarem meses ou anos à espera de uma consulta no serviço nacional de saúde, para o qual contribuíram com vastos impostos? Podem os seus descendentes vir a pedir uma indemnização no futuro?

É melhor começar a poupar. É melhor fazermos um grande pé-de-meia, porque, ao assumirmos indemnizações por práticas ocorridas há décadas ou séculos que, na época, eram admitidas, mas que, atualmente, são proibidas, imediatamente seremos sugados pela voragem de muitas indemnizações futuras.

Vamos pagar uma indemnização ao Passado? Vamos pagar uma indemnização ao Futuro?