Foi publicada, com vários meses de atraso, a regulamentação necessária à entrada em vigor, em Portugal, das regras legais que permitem, em casos excepcionais e altruístas, o recurso à maternidade de substituição.

O nosso país entrou, agora, no clube restrito cujos membros aceitam legalmente esta solução para casos graves de infertilidade. Não está em causa a abertura a um mercado de úteros (que existe, como tem sido publicitado, por exemplo, nos EUA), mas antes uma garantia técnica adicional para situações que, de ponto de vista social, médico e ético, merecem da ciência uma resposta excepcional.

Porém, a legislação em torno da maternidade de substituição foi, desde o início, tecnicamente mal elaborada e essas falhas não foram colmatadas com a regulamentação que entrou em vigor no passado dia 1 de Agosto.

Acentuo, aqui, apenas duas fragilidades da mesma, que não esgotam os problemas que, na prática, poderão resultar da aplicação da lei.

A primeira diz respeito à possibilidade de interrupção voluntária da gravidez (IVG) por parte da gestante (a mulher que “cede” o útero), por opção desta, nas primeiras 10 semanas de gravidez.

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Na versão da legislação aprovada em 2016, os deputados parece terem esquecido que, em Portugal, todas as mulheres grávidas, e independentemente da causa dessa gravidez (mesmo nos casos em que ela ocorreu num esquema de maternidade de substituição) podem interrompê-la voluntariamente (nos termos legalmente estabelecidos). Na pressa de aprovar um qualquer regime de gestação de substituição, escreveram no texto da lei que a gestante só pode revogar o consentimento dado para a aplicação da técnica “até ao início dos processos terapêuticos de PMA”. Isto significaria vedar a interrupção da gravidez a este grupo de mulheres grávidas, o que teria suprimido o sono a muitos dos deputados que aprovaram a lei, caso tivessem tido consciência do lapso.

A regulamentação agora publicada, vem, de certo modo, emendar a mão – o que se terá ficado a dever à feliz atenção do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida (CNPMA) – admitindo que a gestante possa recorrer ao regime da IVG, tal como ele vem consagrado no Código Penal. Porém, os potenciais problemas não ficam todos resolvidos, pois a gestante que interrompe a gravidez, ainda que actuando a coberto da licitude, viola o contrato celebrado com o casal beneficiário, pelo que importará perceber como, na prática, o CNPMA vai aceitar as cláusulas contratuais respeitantes a este ponto.

A segunda fragilidade, que já abordei num artigo publicado no Jornal Público em Julho de 2016, diz respeito à não consagração legal do direito ao arrependimento da mãe portadora após o nascimento. Neste ponto, a legislação especial sobre a gestação de substituição está em contradição com um princípio basilar da livre revogabilidade das restrições voluntárias aos direitos de personalidade, que o Código Civil garante há décadas. Com as regras agora em vigor, o casal beneficiário, após o nascimento, pode, nem que seja à força (utilizando a via judicial) arrancar dos braços da mãe portadora a criança acabada de nascer, como se esta fosse propriedade sua e, portanto, em autêntica execução específica.

Pode parecer estranha a defesa deste “direito ao arrependimento”. Porém, a verdade é que, nos ordenamentos jurídicos, como o do Reino Unido, onde a figura é regulada desde a década de oitenta do século XX, os membros do casal beneficiário sabem que não podem dar por garantida a entrega da criança, tendo necessariamente, que pedir ao Tribunal uma ratificação retrospectiva do procedimento, que apenas é concedido nos casos em que a criança já lhes tenha sido entregue (assim se assegurando não ter havido arrependimento da portadora).

Estas cautelas resultam da concessão à experiência da vida: o arrependimento da gestante acontece mais vezes do que se desejaria, e, pelo menos na perspectiva de quem pensou muito mais do que nós sobre o assunto, é tão grave retirar à força a criança da mãe gestante, quanto frustrar as expectativas do casal beneficiário. Assim, mais vale avisar os destinatários que a gestação de substituição é arriscada para (todos) os envolvidos. Com este regime, a gestante também sabe que pode ter que ficar com a criança gerada, quando não contava com isso. Pense-se, por exemplo, nos casos em que os membros do casal beneficiário não estão em condições de a receber, simplesmente porque, desafortunadamente, morreram antes de o parto ocorrer…

Em todo o caso, não duvido que está aberto um novo e importante (embora difícil) caminho para a gestação de substituição em Portugal. Apesar das imperfeições técnicas, a aplicação das regras pode ser melhor do que, neste momento, se antecipa. É o que desejam aqueles que, como eu, vêm na gestação de substituição, mais do que uma perigosa cedência ao argumento da ladeira escorregadia, a concretização de um avanço civilizacional que pode trazer felicidade a alguns, sem prejuízo dos outros.

Docente da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, investigador do Centro de Direito Biomédico