A 24 de abril de 2023, o ex-primeiro ministro António Costa, estando perante uma plateia mista de empresários portugueses e brasileiros, afirmou que os portugueses prefeririam falar com o sotaque brasileiro. Este tipo de generalizações descabidas da segunda mais alta figura de Estado, não só desprestigia um legado cultural de oito séculos, como também não corresponde ao sentimento comum da maioria dos portugueses.

A riqueza linguística do mundo lusófono, passa justamente pela diversidade fonética e lexical que caracteriza cada uma das variantes do português, falado desde o Minho até Timor. Os laços históricos que nos unem aos países da CPLP, nomeadamente ao Brasil, não justificam este tipo de aviltamento cultural, que a bom rigor, não aquece nem arrefece as relações culturais entre os dois países. O tipo de afirmações em questão, talvez motivadas por um discurso politicamente correto, revela um profundo desconhecimento daquilo que são hodiernamente as perceções culturais e linguísticas dos brasileiros face aos portugueses. Não se trata de chauvinismo pueril, mas antes de senso comum objetivo e realista. Pela minha experiência pessoal e familiar, estou em crer que o português de Portugal é tido no Brasil como a referência linguística matricial, a que por vezes leigos e eruditos têm de recorrer para uniformizar o ensino da língua portuguesa na vasta complexidade dialetal do gigante país continental.

Um mito popular que aos dias de hoje ainda prevalece é de que o português de Portugal, tecnicamente chamado «Português Europeu», é mais conservador de que o português do Brasil. Na prática é exatamente o contrário, o português de Portugal, numa perspetiva global, é mais inovador quando comparado com a variante brasileira.

A mero título exemplificativo, vejam-se alguns casos. A sintaxe gramatical brasileira preserva ainda a colocação de várias categorias de pronomes antes do verbo, tal como sucede ainda na generalidade das atuais línguas latinas. Pelo contrário, a variante portuguesa admite hoje na ampla maioria dos casos, a colocação do pronome depois do verbo [ex. Chamo-me / Dei-lhe / Envia-o / Trazia-vos]. Uma outra inovação do português de Portugal, que gera até uma certa estranheza aos lusófonos brasileiros, é sem sombra de dúvidas a adoção do tempo verbal Pretérito Imperfeito com função de modo Condicional. Na variante brasileira, por mais informal que seja o contexto, mantém-se o uso do modo Condicional [ex. “O senhor poderia me trazer um copo de água?” / “Eu gostaria de tomar um sorvete“/ “Eu diria que isso é uma boa ideia! “].

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No que concerne ao campo lexical, não obstante a riqueza vocabular que o Brasil apresenta, de norte a sul, de este a oeste e, até dentro dos próprios estados, há expressões portuguesas que ainda hoje se preservam e que em Portugal simplesmente caíram em desuso. Consta que a expressão «bater um papo» terá atravessado o Atlântico pela boca dos marinheiros portugueses no séc. XVI, atestada a sua presença nas crónicas de João de Barros. Na variante portuguesa generalizou-se o emprego do vocábulo «talho», ao passo que na variante brasileira ainda se emprega a palavra «açougue».

A comunidade brasileira em Portugal cresceu exponencialmente nos últimos dez anos, tendo como consequência o aumento significativo de crianças brasileiras a frequentarem as nossas instituições de ensino. Na área metropolitana de Lisboa, atrevo-me a dizer que muitas turmas do ensino primário são hoje compostas na sua metade por crianças lusófonas cuja variante de português falado em casa é a brasileira.  Ainda que seja um fenómeno relativamente recente, parece-me merecer a acuidade por parte da comunidade docente, desde o primeiro ciclo até ao ensino secundário.

O ponto de partida da discussão passa desde logo por deixar claro que no Sistema de Ensino português (1.º, 2.º, 3.º ciclos e secundário), a variante linguística lecionada será sempre a portuguesa. Os alunos lusófonos, cuja variante materna não seja a portuguesa, no contexto escolar deverão ser incentivados a aprender o português de Portugal. De forma gradual e sistemática, todos estes jovens alunos lusófonos devem aprender e usar a gramática portuguesa sempre que se encontrem no âmbito escolar, sem prejuízo de manterem a variante lusófona não portuguesa no seu espaço pessoal e familiar.

Inegavelmente, o uso de uma língua e até de uma determinada variante, ou mero sotaque, encerra em si vários aspetos de ordem psicolinguística, motivados por fatores emocionais e afetivos. A realidade social dos últimos anos tem-me evidenciado casos curiosos que tive a oportunidade de conhecer. Vários jovens de origem brasileira, chegados a Portugal em criança, ao fim de dois ou três anos acabaram por aprender e dominar relativamente bem o português de Portugal, inclusive no sotaque. Contudo, o mais interessante é que no espaço familiar nunca deixaram de usar a variante brasileira e, quando chegaram à idade adulta dominavam relativamente bem ambas as variantes, oscilando entre o uso da variante portuguesa fora de casa no âmbito profissional e público e, entre a variante brasileira no contexto familiar. Conheci até há pouco tempo um caso extraordinário de sucesso. Uma jovem brasileira, chegada a Portugal com dezasseis anos de idade e tendo ingressado no sistema de ensino português, ao fim de poucos meses já dominava a variante portuguesa e, dois anos mais tarde obteve a classificação de 16 valores no exame nacional de português.

No ensino superior, a situação é, porém, diversa. Há cerca de vinte anos, apresentar um trabalho académico redigido em português com a variante brasileira era ainda alvo de suspeita. Recaía sobre o dito trabalho a suspeita de plágio, um copiar-colar de uma pesquisa qualquer feita no Google. Hoje, no entanto, o cenário é bastante diferente. Por força dos convénios celebrados entre instituições de ensino superior portuguesas, brasileiras e dos PALOP, a crescente mobilidade e presença não só de estudantes, mas também de docentes de outras partes da lusofonia, levou à aceitação e normalização do emprego de outras variantes de português nos nossos estabelecimentos de ensino superior.

A aprendizagem da língua é fundamental para o desenvolvimento de várias competências cognitivas dos nossos jovens, entre as quais, a elaboração de um pensamento coerente, estruturado e argumentado, bem como o desenvolvimento da própria criatividade linguística. Neste sentido, entendo que deva haver uniformização no ensino do português nas nossas escolas e, jamais, o Ministério da Educação deva ceder a pressões pseudo inclusivas multiculturalistas.  Não me parece adequado que a um jovem lusófono, quer seja do Brasil, dos PALOP ou de outro país da lusofonia, lhe seja permitido o uso da sua variante materna no âmbito escolar por tempo indeterminado, sem que haja qualquer correção por parte dos professores.  Assim como não me parece adequado, por um princípio de reciprocidade, que uma criança portuguesa a residir no Brasil e a frequentar o sistema de ensino brasileiro, possa continuar por muito tempo a não aprender e empregar as regras gramaticais próprias da variante brasileira.

A língua portuguesa é rica na sua diversidade. Há que preservá-la mediante o seu estudo e uso apropriado.