Qualquer bom dicionário de português sabe que a palavra extraordinário se define como aquela que tem caracter de exceção, que não era esperado, que não se faz habitualmente. No entanto esta simples lição primária parece faltar a muitos dos responsáveis do estado.

No caso particular dos médicos, esses vilões interesseiros, ganha caráter ainda mais… extraordinário. Ora, não é que contrariamente ao que se poderia pensar, um médico terá (após 150 horas extraordinárias obrigatórias por lei!) que informar que não se encontra mais disponível para ir para além do que é o seu contrato de trabalho? Extraordinário, não é?

Muitos, como é o meu caso, aceitam esta extraordinária realidade sem crítica ou critério. Vamos a meio deste ano e tenho já mais de 300 horas extraordinárias. Relembro que a palavra aqui significa, para além do meu horário de trabalho. Fazemo-lo para que o acesso à saúde por parte da população seja o menos dificultado possível. Fazemo-lo não por obrigação, mas por sentido de missão. Fazemo-lo para que o mau não se transforme em catástrofe. Extraordinário, não é?

Este esforço, concentrado quase exclusivamente no serviço de urgência, perpetua o círculo vicioso de uma saúde urgenciocentrica tradutora de um país reativo e não preventivo. Ora, o médico aí amarrado, compromete a sua formação como interno com prejuízo dos seus estágios e com consequente diminuição da qualidade da futura assistência prestada. Limita o tempo que tem para intervenções na comunidade, de investigação e na divulgação da ciência nacional. Apesar de tudo isto, muitos vão ainda mais longe e são capazes de tudo fazer, sendo verdadeiras referências internacionais que prestigiam e engrandecem este pequeno pais. Extraordinário, não é?

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Ora, curiosa característica desta dedicação extraordinária (antes que critiquem, eu não faço privada) é que se acompanha de um esforço extraordinário. O que por definição não é sustentável durante muito tempo. Porque, por definição, ele deveria ser transitório e temporário. Imaginem então o real estado da saúde pública (o conceito coletivo e não a especialidade ainda que nesta fase seja o mesmo) em Portugal. Imaginem que os médicos, esses desprezíveis motivados apenas pela remuneração, punham fim a esta banalização intemporal. Aquilo que hoje são críticas seriam rapidamente convertidas em elogio. Extraordinário, não é?

Os médicos, esses mais vis dos que atualmente se designam estupidamente profissionais de saúde, são também eles, antes de qualquer outra coisa, pessoas. São mães, pais, irmãos, filhos e amigos. Têm tanto direito como qualquer outro cidadão a gozar de condições de trabalho dignas e em equilíbrio com os seus projetos pessoais. Mas não o fazem. Não o fazem para que outros possam dormir descansados sabendo que quando o seu bem mais precioso, aquele que na sua ausência, nenhum outro faz sentido, está assegurado. Extraordinário, não é?

Por isso escrevo este pequeno texto, porque acredito que este esforço mais do que reconhecido, não pode ser esquecido com o passar de cada ano civil. Descurado, na preparação de cada verão, tido como implícito em cada escala de urgência. Porque, e como certamente alguns de vós já se prepararão para comentar. O salário não é tudo. Extraordinário, não é?