No princípio era o trabalho. Depois veio o capital. Agora temos a tecnologia. E há muito que se fala no papel potencialmente libertador da tecnologia.

Com efeito, em 1930, John Maynard Keynes previu que os britânicos estariam libertos do trabalho. Segundo Keynes, a automatização exponencial e a subida do nível de vida seriam tais que num futuro longínquo, algures em 2015, os afortunados habitantes do Reino Unido olhariam com comiseração para as gerações anteriores que eram obrigadas a ter um “emprego” e a “trabalhar toda a semana”.

Ora, olhando para a situação atual, estamos numa encruzilhada. Irá a tecnologia servir para consolidar a sociedade atual centrada no trabalho, confinando os nossos filhos (e depois os netos) a uma massa de “pessoas descartáveis” sem qualquer papel no processo produtivo?

Com todo o novo aparato tecnológico à nossa volta, os seres humanos estão a ser dispensáveis como trabalhadores e, no futuro, provavelmente, o mesmo acontecerá como militares ou até mesmo como cidadãos. A robotização em curso é apenas a face mais visível dessa mutação.

Na esteira de Keynes vêm agora os gurus de Silicon Valley defender igualmente o fim do trabalho como o conhecemos e o pagamento de um salário mínimo a todos como compensação. Mas se considerarmos o modo como as grandes empresas de novas tecnologias fogem aos impostos não sei onde os Estados cada vez mais frágeis vão buscar a receita para sustentar essa utopia de um salário para todos independentemente do trabalho (a nova vulgata marxista de a cada um segundo as suas necessidades numa terra edílica de leite e mel).

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O exemplo mais chocante do paradoxo subjacente a esta nova utopia encontra-se precisamente no controverso subsídio fiscal atribuído pela Irlanda à Apple no valor de treze mil milhões de euros, o equivalente a quase todo o IRS pago pelos trabalhadores portugueses durante um ano. Isto é, se o capital fica isento e o trabalho é cada vez mais tributado (em Portugal fala-se num novo aumento do IRS), como se sustentará uma sociedade só com gurus informáticos e uma mega multidão de “não empregados” a viver do “sistema”?

No final o que acontece é que a classe média reduz o seu rendimento para pagar o custo do Estado social e ainda as infraestruturas de apoio à atividade económica (eu sou um defensor acérrimo da economia de mercado, mas não da subsidiação estatal à mesma).

A verdade é que estamos finalmente a perceber que o trabalho, o papel do homo laborans (Hannah Arendt), já não é um imperativo biológico, uma forma de sobrevivência para a espécie. Passar o dia a enviar mensagens de correio eletrónico num qualquer escritório não tem nenhuma semelhança com a atividade de caçador-recolector de que dependia a subsistência dos nossos antepassados Sapiens. O trabalho é assim apenas mais uma invenção da qual a humanidade poderá vir a prescindir.

O trabalho clássico é substituído pelos robots, o cérebro pelo computador, a comunicação, incluindo a presencial, é substituída pelas redes sociais. Dá-se claramente o fim do trabalho como forma de socialização e afirmação na polis, daí assistirmos ao declínio dos partidos trabalhistas um pouco por todo o Ocidente onde se implantaram na representação democrática. Será que estamos prestes a assistir à uberização da mão-de-obra?

O mundo empresarial hipermoderno obriga a viver sob pressão permanente, forçando os diversos intervenientes no circuito económico a agirem prontamente, a serem reativos, criativos, hiperinformados, sujeitos a avaliação individual contínua, subjugados à mobilidade e flexibilidade permanentes.

A globalização do próprio capital humano, onde impera o curto prazo, faz com que paire a ameaça de se perder o emprego e ficar à margem. A civilização do efémero (Gilles Lipovetsky) vê assim afirmar-se uma nova classe ansiosa (Robert Reich) privada de qualquer segurança no trabalho, em que os indivíduos descartáveis e precarizados vivem uma provação cruel do fracasso pessoal na amargura e no sentimento de vergonha.

Enquanto desaparece o coletivo do trabalho (a força dos sindicatos no sector privado está desaparecer e muitos transformaram-se em verdadeiras organizações empresariais ou burocráticas em prol dos seus eternos dirigentes), cada pessoa é remetida para si própria, suportando cada vez mais sozinha o peso do seu percurso profissional (os poucos jovens qualificados, por exemplo, que conseguem um bom emprego são explorados até ao chamado ponto de burn out).

Muitos de nós tornar-se-ão ultra polivalentes, trabalhando em vários fusos horários simultaneamente, enquanto a China ou a Índia continuarem a crescer. Um trabalhador poderá assegurar serviço ao cliente para um empregador londrino, fazer prospeção de mercado para um patrão em Tóquio e descobrir ideias comerciais para uma marca em Berlim.

Ainda assim, apesar de muitos terem considerado o trabalho como algo impróprio para cidadãos livres ou como castigo pela expulsão do Paraíso, o valor do trabalho sempre foi o pilar da economia desde Locke, Smith, Ricardo até Marx. Locke, na sua obra Os dois Tratados sobre o Governo Representativo, dizia mesmo que ”é o trabalho que torna a natureza útil. É o trabalho humano que acrescenta valor à natureza (…) Aquele que se apropria da terra através do seu trabalho não diminui, mas antes aumenta, o bem comum da humanidade”. É o trabalho que veste o Homem, que o liberta da necessidade (antecipando o arbeit macht frei de Marx, ignominiosamente reproduzido pelos nazis à entrada dos seus campos de concentração).

A intuição de que o trabalho está no centro da aspiração humana a dominar a natureza acabou por se converter no suporte da classe média em todo o mundo ocidental. O fim do trabalho em consequência das circunstâncias atrás descritas está a fazer regredir essa mesma classe média em todo o Ocidente. No fundo, o fim do trabalho será infelizmente o fim da classe média. O fim da classe média será o estertor do ponto de equilíbrio das democracias demoliberais.

Em suma, não poderemos saber o que o futuro nos reserva, quanto mais como serão as nossas sociedades daqui a umas décadas. Por essa altura, todavia, o mundo já terá testemunhado a passagem de bandos sucessivos de cisnes negros, aqueles a que Nassim Taleb, escrevendo sobre a aleatoriedade, designa como desenvolvimentos imprevisíveis. Mas poderemos ter uma certeza, a classe média poderá não existir!

José Conde Rodrigues é professor universitário