Quem tem memória do Alentejo de há 30 ou mais anos lembra-se bem da imensidão da planície a perder de vista sem vislumbre de horizonte. Muitos campos por cultivar ou entregues à sorte de uma sementeira de sequeiro. Aquilo que havia era um modo de vida que seguia o ritmo dos caprichos do tempo. Recordo-me, em criança, de ouvir os antigos a clamar por água e quando esta teimava em não cair, a apreensão e angústia que lhes tomava conta do rosto com a certeza de que não havia outra forma de viver. Era esta a cadência indolente das vidas que o Alentejo trazia.
Este compasso foi interrompido, qual acelerador de partículas, pela chegada de um empreendimento com quase 40 anos de atraso, que colocou na mão dos alentejanos a possibilidade de serem eles, agora, a ditar as regras das suas vidas: escolhendo o que plantar! Qual sonho distópico do celeiro de Portugal? Mas nem todos o sentiram assim. Nem todos conseguiram olhar e ver. Houve uns que decidiram escolher aquilo que era mais cómodo: deixar que outros tomassem o seu lugar e decidissem por eles o futuro do Alentejo.
Outros houve, que perscrutaram lá longe o ensejo de fazer o Alentejo maior. António Silvestre Ferreira, o homem que olhou, viu e fez. Viu porque enxergou lá longe as potencialidades que o Alentejo oferecia. A distância, na maioria das vezes, aproxima-nos. Viu que o Alqueva colocaria o futuro nas mãos dos alentejanos. Traria a água que outrora lhes escapava pelos desmandos de uma vontade que não era a sua. Aquilo que fez primeiro foi o que os pais e as mães fazem aquando do nascimento do filho: dar um nome, conferir uma identidade. Vale da Rosa. Muitos estranharão o nome porque olham e não veem vales nem montanhas. Mas o que não sabem é que o vale é uma memória da infância e as crianças olham, sonham e criam. As uvas que o seu pai outrora plantara já tinham um nome, seriam as uvas do vale da rosa! No que outros viram um produto banal, uma commodity (fica sempre bem o recurso a um anglicanismo), António Silvestre Ferreira olhou e viu uma síntese do Alentejo nas suas uvas. Conquistou o mercado nacional e conservou clientes antigos além-fronteiras. Cá, impôs uma marca com qualidade garantida que só o Alentejo oferece. Lá, engrandeceu o nome de Portugal. Afinal somos capazes de competir entre os melhores. Grande lição não de quem diz, mas de quem faz. O vale da rosa não é um conto de fadas, porque afinal todas as rosas têm espinhos. O Alentejo de outrora, entregue à sua sorte, foi vítima de uma sangria legítima das suas gentes que procuraram outros rumos, outras oportunidades. Sem pessoas não há mão-de-obra, sem mão-de-obra não há empresas e sem empresas não há riqueza. Parece simples. Outros, noutras latitudes, olharam, não viram e não fizeram. Somos cada vez menos cá, mas somos cada vez mais lá. Nunca o mundo teve tanta gente. Et voilá: conciliação do melhor dos dois mundos. Veio uma chusma de gente de outras paragens para cá. São esses, com os poucos que cá ficaram, que tricotam a uva no vale da rosa. Que lavram as terras e plantam as sementes. Que sujam as mãos e se enlameiam na terra. Eles, ninguém quer ouvir. Porque toda a gente já sabe. O quê? Nada. Talvez conheçam o Alentejo em trânsito para outras latitudes. Dali apenas olham, mas não vêm.
Porque outros olharam, não viram e não fizeram. A água, por si só, não se bastava. Faltavam as gentes. O saber e o poder das gentes. Sem os quais, a única via para muitos de cá foi abrir espaço aos de lá. O modelo de desenvolvimento que os de lá trouxeram, dizem, não é sustentável. Sim, talvez não seja. Há aqui e ali episódios de exploração das gentes de lá. Sim, talvez haja. Talvez tudo pudesse ser diferente, se caso houvesse alguém que visse e fizesse. Mas não viram, tampouco fizeram. Agora aqueles que olharam e viram, dizem que fizeram mal. Só agora?
Olhar, ver e fazer. Três verbos simples. Poucos os conjugam na primeira pessoa. Falta-nos o respeito e a admiração por aqueles que olham, veem e fazem. Nestes tempos, em que aqueles que ditam o tempo não têm tempo: todos olham, ninguém vê, nem ninguém faz!
Tomara que houvesse outros tantos homens para olhar, ver e fazer como o António Silvestre Ferreira.