Estávamos em 1952. Truman era o Presidente dos Estados Unidos da América – onde o custo médio de uma casa nova era de $9.050 e de um carro novo de $1.700 –, Stalin governava com punho de ferro a União Soviética (a Rússia e a Ucrânia estavam unidas na mesma federação), Mao Tsé-Tung ascendera recentemente ao poder na recém-criada República Popular da China, Churchill ocupava pela segunda vez Downing Street, Ernest Hemingway publicava O Velho e o Mar, o Sporting fora bicampeão num Portugal que ainda não conhecia a televisão e nasceu em Leningrado (como se designava à época São Petersburgo) Vladimir Putin.
Foi neste mundo, no dia 6 de Fevereiro, que o Rei Jorge VI do Reino Unido faleceu, de trombose, tendo-lhe sucedido no trono a filha mais velha, Elizabeth Alexandra Mary, conhecida desde então em todas as línguas e nações como Rainha Isabel II.
Embora, como tenhamos visto, o designado Accession Day (dia em que Isabel II ascendeu ao trono britânico) se tenha celebrado pela septuagésima vez no dia 6 de Fevereiro deste ano, comemora-se esta semana (de 2 a 5 de Junho) o Jubileu de Platina da monarca.
Nascida em 1926, era a terceira na linha de sucessão e nada fazia prever que um dia viesse a ser, ela mesma, Rainha. Foi a famosa e polémica abdicação do seu tio, Eduardo VIII, em 1937, que lhe abriu, a partir do pai, os caminhos do trono e de uma vida totalmente entregue à Coroa. Durante a II Guerra Mundial, na transição da infância para a adolescência, fez transmissões radiofónicas na BBC, aproximando-se das crianças que, por todo o Império, estavam separadas dos pais (aliás, também Isabel e Margarida, sua irmã, se viram forçadas a uma separação dos pais neste período). Numa dessas transmissões, disse: “Quando tivermos paz, lembremo-nos que nos cabe a nós, os filhos de hoje, fazer do mundo de amanhã um lugar melhor e mais feliz”. Nos últimos anos do devastador conflito, juntou-se ao exército, e em 1945, com 18 anos, foi condutora de ambulâncias, sendo a primeira monarca feminina britânica a ter servido nas Forças Armadas.
Em 1947, casou com o Príncipe Filipe da Grécia e Dinamarca, futuro Duque de Edimburgo, com quem teve quatro filhos: Carlos, Ana, André e Eduardo. Durante uns anos viveu em Malta e, em 1952, com apenas 25 anos, subiu ao trono, depois da morte do seu pai, Jorge VI. A sua coroação, no dia 2 de Junho de 1953, foi uma estreia no que toca a cerimónias transmitidas na íntegra em directo pela televisão, tendo tido, pela primeira vez, mais gente a assistir no ecrã do que a ouvir no rádio. Foi um marco histórico para a televisão, mas também um enorme passo para a aproximação da monarquia às grandes massas. Nos anos seguintes, visitou inúmeros países, incluindo Portugal, em 1957, onde foi recebida com toda a pomba e circunstância, num acontecimento que ainda hoje impressiona pela sua exuberância e grandeza. Nessas viagens, enchia cidades e movia multidões.
Aprendeu muito com o seu primeiro chefe de governo, Winston Churchill, com quem manteve uma relação muito especial, e enfrentou graves crises políticas, como o conflito gerado pela nacionalização do canal do Suez ou o colapso de uma mina e consequente avalanche que soterrou uma escola primária no País de Gales e que significou a morte de mais de uma dezena de pessoas, como é retratado com especial ênfase na série The Crown. Visitou mais de uma centena de países e assistiu, de uma forma activa, a um mundo em mudança, à Guerra Fria em todo o seu esplendor e ao colapso do Império como o conhecia. Nos anos 70 e 80, testemunhou a entrada do seu país na comunidade europeia, o intenso conflito na Irlanda do Norte e a guerra das Malvinas, já no governo Thatcher. Em 1981, o mundo assistiu apaixonado ao mediático casamento entre o seu filho primogénito e herdeiro e Diana Spencer e, em 1992, o annus horribilis da monarca, esta confrontou-se com uma relação cada vez mais conturbada entre Carlos e Diana e com o divórcio de dois filhos, a Princesa Ana e o Príncipe André. Cinco anos depois, no ano de 1997, deu-se a morte da Princesa Diana, tendo a resposta da Coroa sido objecto de divergências e críticas, talvez as mais duras e significativas em todo o reinado. Todavia, como sogra de Lady Di e avó de William e Harry, a Rainha mostrou a sua emoção e soube superar este momento difícil.
À entrada para o novo milénio, Isabel II perdeu a mãe e a irmã, começou a ter os seus primeiros problemas de saúde e assistiu a uma mudança no paradigma político mundial. Continuou as suas visitas de Estado e manteve uma relação muito próxima com o povo britânico. É de destacar ainda o facto de ter sido a primeira monarca britânica a visitar a República da Irlanda, em 2011, num acto carregado de simbolismo e significado histórico. Contracenou com Daniel Craig (no papel de James Bond) na cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos de 2012, em Londres e assistiu, nessa década, a dois referendos fundamentais: o da Escócia, em 2014, que ditou, por 55%, a vontade deste povo de permanecer parte do Reino Unido; e o do Brexit, em 2016, que, verificada a vitória do Leave, significou o “pontapé de saída” para o longo e litigioso divórcio entre os britânicos e a União Europeia. Manteve sempre, ao longo destas sete décadas, uma imparcialidade e postura suprapartidária notáveis. Nos últimos dois anos, viu um mundo abalado pela crise do Covid-19 e viu partir, no ano passado, o seu “rochedo” e companheiro de vida, o Príncipe Filipe, com 99 anos.
Filmes e séries como The Queen, protagonizado por Helen Mirren, ou, mais recentemente, The Crown, da Netflix, retratam para todo o mundo e com as lentes da ficção o dia-a-dia do símbolo vivo da monarquia britânica. Mas não são necessários episódios para fazer de Isabel II um ícone de popularidade. Na verdade, segundo uma sondagem do YouGov datada do mês passado (28 de Abril de 2022), os números são avassaladores: 58% dos inquiridos avaliam a totalidade do reinado de Isabel II como muito bom e 24% como em geral bom (fairly good job), sendo que, descontados os 11% que não sabem, restam apenas 7% que classificam este reinado como mau. Ou seja, 82% dos britânicos consideram que a Rainha fez um trabalho bom ou muito bom, contra 7% que o qualificam como mau ou muito mau. Tomara a qualquer Presidente da República ter este registo!
Por ocasião do seu 21.° aniversário, em 1947, aquela que era à época a Princesa Isabel proferiu, na África do Sul, um famoso discurso, no qual pronunciou as seguintes palavras: “Declaro diante de todos vós que toda a minha vida, seja ela longa ou curta, será dedicada ao vosso serviço e ao serviço da nossa grande família imperial, à qual todos nós pertencemos”.
Partindo desta locução, e fazendo uma pequena curva no tema do texto, seria interessante focarmo-nos em três ideias presentes nestas palavras da Rainha e que, no entender de quem escreve este texto, sintetizam perfeitamente, embora de um modo muito resumido, a essência da monarquia.
Em primeiro lugar, Isabel II usa a expressão my whole life (“toda a minha vida”), o que nos transporta para algo eterno e perene. O reinado de um monarca não está limitado no tempo, como os mandatos presidenciais de quatro ou cinco anos, não é um contrato a prazo ou um casamento com divórcio previamente marcado. Assemelha-se sim ao conceito de eternidade e, por isso, de totalidade. O Rei (ou a Rainha) não se disponibiliza por meia dúzia de anos, mas entrega-se ao povo por toda a sua vida e, por isso, entrega-se todo, na totalidade do seu ser, “até que a morte os separe”. Não precisa de fazer favores ou ceder naquilo em que acredita para ganhar as próximas eleições e a sua visão não é a curto prazo nem conjuntural. É uma visão total e estrutural, intemporal e, acima de tudo, incondicional.
Por outro lado, são de destacar igualmente as palavras devoted to your service (“dedicada ao vosso serviço”). O monarca é o servo por excelência, aquele que, acima de tudo, serve o povo e a Nação sem limites ou condicionantes. Ser Rei não é um privilégio no sentido economicista ou de elite social, mas uma vocação. Para além de não ter um prazo de validade, o reinado não tem um horário de trabalho. O Rei nunca deixa de o ser, não tira férias de reinar, é Rei à terça-feira e ao Domingo, às 8h e às 23h. A vida de um Rei é, por isso, uma vida sacrificada. Sacrifica-se a intimidade pessoal e o direito a ser anónimo, sacrifica-se a possibilidade do cargo de sonho, sacrificam-se as férias e o descanso. Sacrifica-se uma vida normal e sacrificam-se, certamente, muitos sonhos. O Rei dedica a sua vida ao serviço de todo o povo e para o bem comum deste e tudo o que faz se orienta neste sentido.
Por último, salienta-se neste discurso a imagem de uma grande família (our great imperial family to which we all belong). E, se os dois pontos anteriores são importantes, este não lhes fica nada atrás. A figura do Rei foi muitas vezes comparada pela tradição intelectual monárquica a um pai, sendo que nada é mais conforme à realidade, como nos lembra o Príncipe Imperial do Brasil, D. Bertrand de Orléans e Bragança (que recentemente esteve em Portugal), que, em 2018, referiu que “toda família é uma pequena monarquia. Qualquer família, o pai é rei, a mãe é rainha e os filhos são príncipes-herdeiros”. E esta dimensão familiar do regime monárquico é uma das razões pelas quais o torna tão especial, porque eleva o amor do monarca pelos seus súbditos. Não é apenas a dedicação de um funcionário ao seu emprego, nem mesmo o afecto daquele que serve à causa servida, mas o amor que um pai tem pelos seus filhos.
A monarquia conforma a política à ordem natural, humanizando a organização social de uma Nação. O Rei é chamado a velar pelo seu povo como um pai cuida dos filhos, constituindo com eles uma relação pessoal e sentimental que em tudo supera o funcionalismo burocrático da república. E isso materializa-se na família real, simultaneamente comunidade de sangue e instituição política, que corporiza em si todas as famílias desse país, com a sua diversidade e carácter simultaneamente uno e plural, sendo em si mesma a representação viva da história e da tradição de um povo, dos seus feitos e das suas características. A família real é a imagem do passado e do presente de uma comunidade, sendo igualmente o garante do seu futuro. Brilhantemente, o Prof. Miguel Ayuso definiu a monarquia e a família real nos seguintes termos: “O que é a monarquia? Uma sociedade constituída por famílias regida por uma família”.
Isabel II reina há mais de 70 anos, tendo o mais longo reinado da história britânica e estando a cerca de dois anos de estabelecer um recorde absoluto nessa matéria, que pertence ainda a Luís XIV. Viu passarem por si sete Papas, 13 Presidentes norte-americanos e 14 Primeiros-Ministros britânicos e subiu ao trono no mundo de Churchill, Stalin e Mao. Entretanto, muito aconteceu e os tempos mudaram radicalmente. Mas Isabel II é uma referência quase incontestável num mundo à procura de um norte e um alicerce num edifício que por muitas vezes esteve à beira de cair. E é a prova viva de que a monarquia está viva e se recomenda, como uma solução estrutural e válida para muitos dos problemas que queremos e precisamos de resolver. Neste Jubileu de Platina, os britânicos têm muito para celebrar e para agradecer.
Disse, em 1947, que a sua vida seria um serviço, que serviria sempre a grande família do seu povo. E a verdade é que, 70 anos depois, podemos confirmar: a Rainha é uma mulher de palavra!