A palavra radica na criação, no ano que se segue ao fim da II Guerra Mundial, do Partido Justicialista, na Argentina, com a liderança de Juan Domingo Peron. Associa o seu nome a justiça social e bem-estar para os trabalhadores (The Twenty Fundamental Truths of Justicialism, marxist.org). A prática política do justicialismo argentino, teve diversas características populistas. O Partido Justicialista, ainda hoje um dos principais partidos da Argentina, já foi muita coisa e o seu contrário. A palavra justicialismo, nas últimas décadas, ganhou outro valor semântico – atos associados à ideia de justiça, sem seguir os devidos parâmetros valorativos e institucionais, seja por grupos políticos, pela comunicação social, por movimentos orgânicos ou inorgânicos. As práticas justicialistas – apropriações indevidas do poder de julgar – estão, cada vez mais, presentes na sociedade contemporânea, em diferentes instâncias e graus, face ao enfraquecimento da rule of law e ao aumento das tendências populistas.
É neste contexto que li, com perplexidade, no Diário de Notícias, do passado dia 7 de Outubro o seguinte: um ex-juiz, por unanimidade expulso pelo Conselho Superior da Magistratura, decidiu fazer justiça por mãos próprias. Na notícia, há um link para um vídeo, em que o dito, no Porto, acompanhado por membros do seu grupo de extrema-direita – Habeas Corpus – dizia: ”Viemos proceder ao encerramento destas instalações. (…) A AIMA ficará encerrada por determinação nossa.”
Ridículo? Caricato? Ou é uma oportunidade para refletir sobre a forma como, em Portugal, se tem erodido a autoridade do Estado em geral e do sistema judicial em particular, a favor de atitudes de grupos e sectores, por vezes extremistas, que reivindicam fazer “justiça por mãos próprias”?
O justicialismo é uma forma de tomada de decisões, julgamentos sobre terceiros, em que o acusador, o julgador e o carrasco não se distinguem. O justicialismo desconsidera os valores e os procedimentos correspondentes à separação de poderes, ao funcionamento dos tribunais, e, tem por base preconceitos populistas, corroendo a confiança e a estabilidade das instituições.
Até dentro do sistema judicial, se não tivermos cuidado, pode haver justicialismo.
É o que aconteceria nos tribunais, se os magistrados se importassem menos com um processo justo e o direito de defesa do acusado do que com a obtenção de uma condenação ou, pelo menos, de uma suspeição severa, independentemente da existência de provas e do cumprimento das regras do Direito. Ou se houvesse decisões judiciais com efeitos dilatórios, praticadas por magistrados, que beneficiassem, indevidamente, certos acusados, no quadro de determinados processos.
Espera-se, por todas as razões, que estes cenários não se possam verificar no âmbito da justiça legítima.
Fora do sistema judicial e, portanto, sem as vestes da administração da justiça estatal, há diversas formas de visar alvos singulares e coletivos, para os atingir e abater. As redes sociais, são hoje um exemplo maior destes “tribunais privados”, tantas vezes com a participação de pessoas que se deixam manipular e que aderem a formas simplistas de julgamento de caráter e de linchamento público. As declarações justicialistas de líderes populistas, media, organizações que atuam na sombra, grupos extremistas, indivíduos com tendência para o desequilíbrio, deliberação maldosa e/ou acusações irresponsáveis, promovem, amiúde, situações graves de afetação de direitos dos cidadãos, violência, destruição de reputações profissionais e pessoais, até suicídio, sem escrúpulos ou constrangimentos.
O não reconhecimento, por personalidades com protagonismo social, de decisões judiciais transitadas em julgado e a afirmação de que aquilo que é justo é diferente do que foi decidido judicialmente, é, ainda, outro exemplo de justicialismo.
A situação que acima referi, de tentativa de fecho de uma repartição pública, é quase uma nota de rodapé face a movimentos bem mais insidiosos e de impacto sistémico. Todavia, é demonstrativo de como hoje, o desafio às instituições, a falta de sentido sobre os limites de intervenção pessoal e coletiva, se apresentam, sem nenhum constrangimento.
O que está em causa é a própria liberdade e a organização social, pois se todos podem sentenciar e julgar, se as autoridades legítimas não são reconhecidas, como podemos viver, respeitosamente, em comunidade?
Credibilizar as instituições judiciais, educar, desde cedo, para a cidadania responsável de todos os atores sociais, e ter instrumentos legais e operacionais de combate aos atos justicialistas, impõem-se.