A corrupção é um exercício descendente: o corpo morto corrompe-se e decompõem-se; a língua mal cuidada é corrompida e degrada-se. As pessoas, para constituir vantagens indevidas, em diversas situações, corrompem-se ou são corrompidas. Estão vivas, mas acontece-lhes o destino dos corpos e da língua – degradam-se, decompõem-se.

A corrupção do corpo é algo que acontece, com ritmos que a Natureza determina, apesar dos exercícios da ciência e dos mitos sobre a juventude eterna. Uma língua, mal falada, mal escrita, aguenta-se, pese embora a dor que causa assistir à sua degradação. Mas uma alma corrompida é coisa que faz abalar a estrutura do universo. O sentido do bem e do mal remetem para a possibilidade de equilíbrio entre as pessoas e as coisas. A corrupção da alma é um mal, acontece pela obtenção de vantagens indevidas. O que é uma vantagem que não nos pertence? Toda aquela que é obtida por meios lícitos ou ilícitos para lá do razoável equilíbrio das transações. As trocas, as transações, são parte essencial do quotidiano – toma lá, dá cá. A maior parte dos seres humanos vive em situações de troca (poucos são os que se retiram, e dizem “não desejo da Terra bem algum”). Procuramos vantagens para nós e para os que amamos, para nós e para os que fazem parte da nossa comunidade de interesses, do grupo com quem temos afinidades eletivas. A legítima procura de vantagens é parte de um modelo social em particular, daquele em que, por acordo prévio ou por costume, não se instituiu, de raiz, uma distribuição equitativa.

Aparentemente, em alguns momentos da História, terá havido sociedades mais igualitárias, onde o sentido de vantagem pessoal não se colocava, por a vida minha, ou a dos próximos, não ser apresentada como adversa à vida dos outros. Mecanismos estruturais, comummente aceites, de distribuição e redistribuição fariam com que todos beneficiassem dos mesmos bens e todos se comprometessem nos mesmos deveres. Para lá das mitologias da Europa Moderna sobre o “bom selvagem”, a pesquisa antropológica tem demonstrado que o nosso modelo de sociedade – sedentária, hierárquica e capitalista – não é, necessariamente, o modelo mais sofisticado de distribuição ou que melhor serve o sentido de comunidade humana.

Não é por acaso que Jesus Cristo, colocado perante a questão insidiosa do pagamento de impostos a Roma (feita para o comprometer), responde “Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus” (Lucas, 20:25). Debatendo a questão da autoridade e do destino dos bens, procura mostrar que a alma vale mais que o corpo e que o seu alimento é de diferente ordem. Ora, se assim é, qual a ordem deste alimento? É-nos dito,  ” ‘Amarás o Senhor teu Deus de todo o coração, de  a alma e de todo o seu entendimento. Este é o primeiro e maior mandamento. E o segundo é semelhante a ele: Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Mateus 22:37-39).

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A corrupção da alma é a contradição do mandamento do amor. Porque o exercício amoroso, na espiritualidade cristã, e também no  Islamismo ou Hinduismo, por exemplo, corresponde à construção da alma e esta procura abraçar a comunidade,  o mundo, e não só o ego e os mais próximos.

Os atos praticados de corrupção, de acordo com a legislação em vigor, são, antes de serem crimes face à ordem jurídica,  crimes para matar a alma, para a corromper e depois, destruir. Assim, o corrupto pode ganhar o mundo, mas é um morto em vida, pois matou a alma. Creio que a maior partes dos que se corrompem ou são corrompidos nem se apercebem da profundidade negativa do ato de corrupção contra si próprios. Estes mortos em vida, por vezes, inclusive, até se vangloriam da sua impunidade e tratam por parvos os que se remetem ao exercício de uma prática quotidiana pautada por valores. Pessoalmente, já vi muitos mortos a conduzir grandes carros e a viver grandes vidas. Apesar de estarem mortos vivos, a maior parte deles nem se apercebe do estado de putrefação da alma, pois esta não se manifesta pelo cheiro, mas pela ausência. Ausência do amor, que é a forma maior de reconhecimento do valor da vida.

Portugal, face aos índices de corrupção percebida, está em 34º lugar, entre 180 países (dados de 2023).  Se é verdade que é útil ter índices de medição da corrupção, melhor será cuidar da comunidade, para que esta não se verifique. Elemento fundamental e prévio da luta contra a corrupção é o ambiente social. Infelizmente, entre nós, ser corrupto não é sinal de diminuição de estatuto social, por vezes até há quem tenha inveja do corrupto, pelo estatuto material que atingiu. A corrupção é pública e privada. Não há só políticos corruptos. Há empresários, funcionários públicos, desportistas corruptos, e por aí fora. Por outro lado, nem todos, em determinada categoria, são corruptos. A forma como se generaliza a ideia de que todos os políticos são corruptos é lamentável, porque a maior parte não são. Há, sim, um grupo de corruptos na política e a má tendência da comunicação social e da opinião pública de degradar a função política através dessa generalização.

Há muitas formas de corrupção, como o suborno, certas formas de lobbying, de extorsão, de compadrio, de nepotismo, de clientelismo, de tráfico de influências, nomeadamente. A corrupção, muitas vezes, está associada a outros crimes, como o branqueamento de capitais, o tráfico de pessoas e de droga. A corrupção aumenta os custos  dos negócios, mina a confiança nas instituições e limita as perspetivas de crescimento e desenvolvimento. Por isso, a corrupção é, também, um crime contra os mais pobres e desprotegidos. Em termos de impacto, a “grande corrupção” – na política e nos negócios, é mais grave do que a “pequena corrupção” – na burocracia ou nas prestações de serviços. Todavia, independentemente da medida do impacto, maior ou menor, a corrupção é, sempre, um atentado contra a vida de dada comunidade, de falta de respeito pelos outros e, como se viu, por si próprio.

O Decreto-Lei n.º 109-E/2021 de 9 de dezembro, cria o MENAC – Mecanismo Nacional Anticorrupção. Pensar-se-ia que teria sido um passo importante na luta conta a corrupção, nomeadamente, na política e na administração pública. Todavia, dois anos e meio depois, o MENAC não saiu do papel. O presidente do MNAC, em entrevista ao Público no passado dia 21 de Abril, justifica a inacção por dificuldade de recrutar pessoal. Todavia, o mesmo presidente, nove meses antes, a 6 de junho de 2023, subscreve uma portaria que declara a instalação definitiva do MENAC, e onde se diz que estão reunidas as condições humanas e materiais necessárias ao seu pleno funcionamento: “Artigo 3.º Declaração de instalação definitiva: Encontrando -se reunidas as condições humanas e materiais necessárias ao pleno funcionamento do MENAC, declara -se, pela presente portaria, sob proposta do respetivo presidente, definitivamente instalado o MENAC, com efeitos a 6 de junho de 2023.” (Portaria n.º 155-B/2023 de 6 de junho). Afinal, há ou não há condições?

Terminando neste ano o período de vigência da Estratégia Nacional Anticorrupção 2020-2024, espera-se que o atual Governo, face a esta situação, consiga avançar para a existência de um efetivo MNAC e de uma Estratégia Nacional relevante. De boas intenções está, ao que parece, o Inferno cheio.

Portugal precisa de melhorar a prevenção da corrupção e a prevenção passa por um trabalho complexo junto das escolas e das famílias, para que a negatividade da corrupção seja percebida, desde cedo, e para que os corruptos sejam, socialmente, desvalorizados. Se não se atingir este primeiro objetivo, não há mecanismo de transparência que valha. Quem quer, encontra sempre maneiras inventivas de escapar ao escrutínio.

A corrupção é decadência do corpo e do espírito, é fonte de empobrecimento e de divisão social. Que esta percepção fica clara, a bem de todos.