Visualizemos, por um momento, um labirinto dourado. Não um simples labirinto de jardim, mas uma estrutura complexa e multidimensional, onde as paredes reluzem com o brilho do ouro académico, e as passagens se entrecruzam numa intricada rede de regulamentos e decretos-lei. Esta é a metáfora do ensino superior português: uma construção secular que, tal como o navio de Teseu, preserva a sua forma original enquanto, paradoxalmente, cada uma das suas peças é substituída ao longo do tempo.
Este labirinto não é apenas uma realidade física ou administrativa, mas também simbólica. Representa as intricadas relações entre estudantes, docentes, investigadores, gestores e legisladores. Cada ator desempenha um papel crucial, mas todos parecem presos num ciclo de expectativas frustradas e objetivos desalinhados. As paredes douradas simbolizam barreiras repletas de promessas, cuja substância muitas vezes se revela ilusória. Cada um desses elementos do labirinto reflete as dificuldades e as aspirações que permeiam o ensino superior, onde a burocracia e a tradição coexistem com o desejo de inovação e transformação.
Além disso, a complexidade do labirinto também simboliza a interdependência dos diferentes agentes que constituem o ensino superior. As interações entre os vários atores são marcadas por tensões e negociações constantes, muitas vezes orientadas por interesses divergentes. No entanto, é exatamente nessa interdependência que reside o potencial para a criação de algo maior. Se cada parte do labirinto funcionasse em harmonia, seria possível transformar este espaço opaco e muitas vezes frustrante num ecossistema vibrante e produtivo, capaz de responder aos desafios contemporâneos.
Neste contexto, a metáfora do ouro não é apenas um reflexo da aparência reluzente do sistema, mas também uma indicação do seu valor intrínseco. O ensino superior é, afinal, um pilar fundamental para o desenvolvimento de qualquer sociedade. Contudo, esse valor é frequentemente obscurecido pelas barreiras impostas por regulamentos ultrapassados e práticas ineficazes. A verdadeira riqueza do labirinto dourado reside no seu potencial inexplorado – um potencial que apenas poderá ser plenamente realizado através de uma reforma profunda e estrutural.
Para além disso, é importante refletir sobre como o ensino superior se insere num cenário global mais amplo. Hoje, enfrentamos desafios que vão além das fronteiras nacionais: a digitalização acelerada, as mudanças climáticas, as crises económicas e sociais. Todos esses fatores exercem pressão sobre o sistema educativo, exigindo uma resposta coordenada e eficaz. O ensino superior português, para se manter relevante e capaz de competir no cenário internacional, precisa urgentemente de se adaptar e inovar. Essa adaptação, contudo, não pode ser apenas superficial – deve envolver mudanças significativas nos modelos de organização e operação das nossas instituições.
A globalização, por exemplo, exige uma internacionalização mais profunda das universidades e politécnicos. Não se trata apenas de atrair estudantes estrangeiros, mas de promover uma troca genuína de conhecimento, culturas e experiências. O ensino superior português deve ser um ponto de confluência para diversas perspetivas e saberes, enriquecendo o ambiente académico e promovendo uma formação mais ampla e diversificada. Essa abertura ao mundo pode ser uma das chaves para transformar o labirinto numa rede de oportunidades, em que o conhecimento flui livremente e contribui para o desenvolvimento sustentável e inclusivo.
A Arquitetura do Paradoxo
No núcleo deste labirinto, encontramos o RJIES – Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior – que aguarda, há muito, uma atualização que tarda em chegar. Em plena era de mudanças rápidas e profundas, as nossas instituições continuam a ser geridas com um quadro legal obsoleto, que mais limita do que facilita a adaptação às novas realidades. Este quadro deveria ser a base para a evolução, mas acaba por ser uma âncora que impede a necessária transformação.
A avaliação institucional, por outro lado, assemelha-se a um teatro de sombras, onde a realidade se projeta distorcida quando se faz um simples exercício de comparação dos resultados e dos argumentos para a atribuição dos períodos de acreditação. A utilização de métricas e critérios alegadamente falham na captação da verdadeira essência das instituições, nas suas diversas dimensões, porque estes indicadores oferecem apenas uma perspetiva fragmentada do sistema. Por exemplo, a tendência de privilegiar alguns indicadores, obscurece outras dimensões igualmente importantes. A qualidade do ensino, a inclusão de estudantes de diferentes origens sociais, o impacto comunitário das instituições – tudo isso acaba por ser secundarizado em nome de uma ideia de excelência. Precisamos de um novo paradigma de avaliação que reconheça e valorize a complexidade e diversidade do papel das instituições de ensino superior na sociedade contemporânea, independentemente da sua origem de fundação ou localização geográfica.
Além disso, o atual modelo de governança das instituições de ensino superior é frequentemente apontado como um dos obstáculos à inovação. Estruturas hierárquicas rígidas e processos burocráticos lentos dificultam a capacidade de resposta das universidades e politécnicos aos desafios emergentes. Se quisermos verdadeiramente transformar o ensino superior, será necessário repensar as estruturas de poder dentro das instituições, promovendo uma maior autonomia e flexibilidade, e encorajando a participação ativa de todos os membros da comunidade académica na tomada de decisões.
A Distribuição dos Recursos: Uma Fábula Contemporânea
Consideremos a recente saga do “ChatGPT português”, que nos remete para a fábula de um rei que distribui o tesouro atirando moedas pela janela do castelo. Os 10 a 20 milhões de euros atribuídos sem concurso público são como essas moedas, que, por coincidência ou desígnio, caem sempre no mesmo jardim. Num país que se orgulha da sua democracia, é paradoxal que certos processos de financiamento se aproximem de uma lógica de privilégio oligárquico. A falta de transparência e critérios objetivos na atribuição destes recursos levanta questões sobre a equidade do sistema e sobre quem, de facto, beneficia deste investimento, independentemente da sua mais-valia.
A concentração de financiamento para a investigação funciona como um efeito de acumulação: as instituições com maior acesso a recursos continuam a atrair mais, enquanto outras potencialmente podem permanecer à margem do sistema. Este desequilíbrio estrutural compromete a qualidade do ensino e da investigação e mina a motivação e capacidade de inovação das instituições menos favorecidas, que, apesar do seu potencial, são reiteradamente deixadas em segundo plano.
Importa refletir sobre o impacto que esta desigualdade tem na formação dos estudantes. Instituições com menos recursos enfrentam dificuldades em oferecer programas diversificados, infraestruturas adequadas e oportunidades de investigação. Esta desigualdade gera um círculo vicioso que perpetua as disparidades entre as várias partes do sistema, transformando o ensino superior, que deveria ser um motor de mobilidade social, num perpetuador de desigualdades.
Além disso, a falta de um financiamento justo e equitativo não afeta apenas a capacidade das instituições menos favorecidas de oferecerem um ensino de qualidade, mas também limita a sua capacidade de atrair e reter talentos. Professores e investigadores altamente qualificados tendem a procurar instituições que ofereçam melhores condições de trabalho e mais oportunidades de desenvolvimento, o que agrava ainda mais o fosso entre as instituições. Este cenário leva a que as instituições mais ricas se tornam cada vez mais fortes, enquanto as demais lutam para sobreviver.
Também é necessário destacar que a concentração de financiamento nas maiores instituições limita a diversidade do próprio sistema. As instituições menores, muitas vezes mais próximas das comunidades locais, têm um papel crucial na democratização do ensino superior e no desenvolvimento regional. Quando lhes faltam os recursos necessários, não só se perde a oportunidade de promover o desenvolvimento em regiões menos favorecidas, como também se enfraquece a capacidade do sistema de responder de forma inclusiva e equitativa às necessidades da sociedade.
O Vazio Estatutário
No meio deste contexto, o ensino superior particular e cooperativo encontra-se num “limbo legal”, sem um estatuto de carreira docente próprio. É como um ator sem guião, forçado a improvisar para manter o espetáculo em andamento. Esta ausência de um estatuto não é apenas uma lacuna administrativa; é sintomática de uma visão limitada, que persiste em tratar uma parte do sistema de ensino superior como um ator secundário.
A falta de reconhecimento formal neste setor é também reflexo de uma abordagem que não valoriza a diversidade do sistema de ensino superior. Em vez de promover a colaboração e valorizar a complementaridade entre os vários tipos de instituições, persiste-se numa lógica hierárquica que coloca as universidades públicas no topo e relega as demais a um papel secundário. Esta visão não só limita o potencial de inovação, como impede a criação de um sistema verdadeiramente inclusivo e dinâmico.
Para corrigir essa lacuna, é imprescindível que se estabeleça um estatuto de carreira docente para o setor particular e cooperativo que ofereça as mesmas garantias e direitos dos seus congéneres do ensino superior público. Isso não só promoveria um ambiente de trabalho mais justo e equilibrado, mas também incentivaria a qualidade e o comprometimento dos docentes com o ensino e a investigação. O reconhecimento da carreira docente é um passo fundamental para garantir que todos os profissionais do ensino superior tenham as condições necessárias para desempenhar as suas funções da melhor forma possível.
Além disso, o reconhecimento do papel das instituições particulares e cooperativas no sistema de ensino superior é essencial para uma abordagem mais integrada e coerente da educação em Portugal. Estas instituições desempenham um papel importante na diversificação da oferta educativa e na promoção da acessibilidade ao ensino superior. Ao relegar estas instituições a um papel secundário, estamos a perder a oportunidade de criar um sistema mais plural e democrático, capaz de responder de forma mais eficaz às necessidades dos estudantes e da sociedade em geral.
A Refundação Necessária: Uma Nova Odisseia
A refundação do ensino superior português não pode ser um mero exercício cosmético. Precisamos de um novo Dédalo, capaz de redesenhar toda a estrutura e criar um sistema adaptado aos desafios do século XXI. Este processo de refundação deve partir do reconhecimento das falhas do sistema atual e da identificação de oportunidades para um ensino superior mais justo e eficiente.
Em primeiro lugar, é necessário um novo RJIES, suficientemente flexível para se adaptar à velocidade das mudanças contemporâneas, mas robusto o suficiente para garantir a integridade do sistema. Um quadro legal que funcione como um exoesqueleto adaptável, e não uma armadura rígida. Este novo RJIES deve permitir que as instituições respondam rapidamente às mudanças sociais e tecnológicas, incentivando a inovação e a criatividade, sem comprometer os padrões de qualidade e a missão educativa.
Em seguida, o sistema de avaliação e financiamento deve ser completamente repensado. Precisamos de mecanismos transparentes e equitativos, onde o mérito seja o critério essencial. Devemos imaginar um sistema em que os recursos fluam como água num jardim bem cuidado, nutrindo cada planta de acordo com as suas necessidades e potencial, em vez de concentrar a irrigação apenas nas árvores mais altas. Um sistema de financiamento baseado em métricas claras e justas garantiria que todas as instituições, independentemente da sua dimensão ou localização, pudessem prosperar e contribuir para o desenvolvimento coletivo.
Para além disso, é essencial que a refundação do sistema de ensino superior inclua uma reformulação do papel dos diferentes agentes no processo de decisão. A democratização da governança das instituições é uma condição fundamental para criar um ambiente mais participativo e inclusivo. Os estudantes, docentes, investigadores e colaboradores devem ter voz ativa nas decisões que afetam o presente e o futuro das suas instituições. Esta participação é fundamental para garantir que as políticas e práticas adotadas reflitam as necessidades e aspirações de toda a comunidade académica.
O estatuto da carreira docente no ensino particular e cooperativo deve ser uma prioridade, reconhecendo que a qualidade do ensino não depende da natureza jurídica da instituição, mas da excelência dos seus profissionais. Estes docentes merecem o mesmo reconhecimento e estabilidade que os seus colegas do setor público, e garantir-lhes esses direitos é fundamental para promover a qualidade e a continuidade do ensino superior em todas as suas formas. Só assim poderemos assegurar que todos os estudantes tenham acesso a uma educação de qualidade, independentemente do tipo de instituição.
Além disso, a criação de uma cultura de colaboração entre as várias instituições de ensino superior é essencial para o sucesso da refundação do sistema. Em vez de fomentar uma competição que muitas vezes leva à duplicação de esforços e à fragmentação do conhecimento, devemos promover a partilha de recursos, experiências e boas práticas. A colaboração interinstitucional pode ser uma ferramenta poderosa para enfrentar os desafios comuns e para potenciar as capacidades de cada instituição, contribuindo para um sistema de ensino superior mais forte e coeso.
Epílogo: O Futuro como Destino
O futuro do ensino superior português não pode ser uma simples extensão do presente. Precisamos de uma verdadeira metamorfose, em que o sistema emergente seja tão distinto do atual quanto a borboleta é da crisálida. Esta transformação deve ser orientada por princípios de equidade, transparência e excelência, e também por uma visão que reconheça o papel fundamental do ensino superior na construção de uma sociedade mais justa e próspera.
Assim como Virgílio guiou Dante pelos círculos do Inferno, precisamos de lideranças visionárias que nos conduzam por esta transformação essencial. O objetivo não é apenas criar um sistema mais eficiente, mas um que seja capaz de preparar as próximas gerações para desafios que ainda mal conseguimos antecipar. Precisamos de líderes que compreendam a complexidade do labirinto e que, como Dédalo, sejam capazes de criar asas que nos libertem das estruturas que nos aprisionam.
O labirinto dourado do ensino superior deve transformar-se numa ágora do conhecimento: aberta, dinâmica e verdadeiramente democrática. Apenas assim garantiremos que o futuro da educação superior em Portugal não seja um eco do passado, mas uma ponte para um futuro promissor. Precisamos de um sistema que promova a curiosidade, valorize o pensamento crítico e incentive a colaboração entre diferentes áreas do saber. Desta forma, poderemos construir uma sociedade que esteja verdadeiramente preparada para enfrentar os desafios do futuro e que veja na educação superior não apenas uma ferramenta de progresso individual, mas um alicerce do desenvolvimento coletivo.
O desafio que enfrentamos é imenso, mas necessário. Precisamos de coragem para questionar o status quo, visão para imaginar um sistema melhor, e determinação para concretizá-lo. O futuro do ensino superior em Portugal depende da nossa capacidade de transformar o labirinto dourado num espaço onde todos possam prosperar, independentemente das suas origens. É chegada a hora de abandonar as sombras da caverna e avançar para a luz do conhecimento acessível e partilhado por todos.
É fundamental que compreendamos que o ensino superior não é apenas uma questão académica, mas uma questão social e política. A transformação do sistema depende da vontade e do compromisso de toda a sociedade, desde os decisores políticos até cada cidadão. O futuro da educação superior em Portugal deve ser um projeto coletivo, onde todos reconhecem o seu valor e o seu papel na construção de um país mais justo, inovador e competitivo. Só assim conseguiremos transformar o labirinto dourado numa verdadeira fonte de conhecimento e progresso para todos.