Há dias deparei-me com a recente publicação do Livro Branco: Recomendações para Prevenir e Combater o Casamento Infantil, Precoce e/ou Forçado, da Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género (CIG), que me deixou a pensar sobre esta realidade que me era alheia. Decidi então escrever sobre isso, por acreditar no papel fundamental que tem a sensibilização da opinião pública.

Criado em 2021 e com o seu mandato prorrogado em 2022, o Grupo de Trabalho para a Prevenção e Combate aos Casamentos Infantis, Precoces e Forçados apresentou as primeiras conclusões do seu estudo em outubro de 2023. Por iniciativa da Ministra da Juventude e Modernização, Margarida Balseiro Lopes, o livro branco foi agora revisto com a colaboração do Escritório de Londres do Fundo das Nações Unidas para a População (UNFPA).

Segundo o Eurostat, o Gabinete de Estatísticas da União Europeia, entre 2012-2022, houve em Portugal 1051 raparigas e 303 rapazes a casar pela primeira vez, entre os 16 e os 17 anos, e a tendência tem sido de crescimento. Estes números não deixam de ser apenas a ponta do iceberg, dado que estamos a falar do que está registado e é reportado.

Importa, antes de mais, clarificar conceitos, respeitando as noções propostas pelo grupo de trabalho. Por casamento infantil entende-se a união formal ou informal entre duas pessoas, em que pelo menos uma das partes tem idade inferior a 18 anos. Por sua vez, o casamento precoce é a união formal ou informal entre duas pessoas cujo nível de desenvolvimento emocional, sexual ou psicossocial de, pelo menos, uma delas, a torna incapaz de consentir de forma livre e informada. Já os casamentos forçados, que são crime em Portugal desde 2015, entendem-se como a união formal ou informal entre duas pessoas, resultante de constrangimentos, de natureza variada, exercidos sobre uma ou ambas, sejam adultas ou não. Diz-se “infantis, precoces e/ou forçados” precisamente porque são fenómenos interrelacionados, podendo acontecer de forma independente ou sobreposta.

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Em Portugal, o casamento de pessoas menores acima dos 16 anos é possível desde que autorizado pelos pais, tutores legais ou, na ausência dessa autorização, pelo conservador do registo civil (artigo 1612.º do Código Civil). Com o casamento dá-se também a emancipação da pessoa menor, que adquire a plena capacidade de exercício de direitos. No entanto, e considerando o disposto na Convenção sobre os Direitos da Criança, adoptada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1989, e ratificada por Portugal em Setembro de 1990, criança é “todo o ser humano menor de 18 anos”. Assim, uma união em que uma ou ambas as partes é menor, é um casamento infantil, o que aos olhos de diversas convenções internacionais é considerado uma prática nefasta, ainda que legal.

Algumas entidades nacionais e internacionais, entre as quais a UNICEF Portugal, têm recomendado a alteração da lei fixando os 18 anos como a idade mínima. Também no quadro dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, o objetivo 5 relativo à igualdade de género é claro quanto à eliminação de todas as práticas nefastas, entre as quais, os casamentos precoces, forçados e envolvendo crianças.

Importa assim refletir sobre estes fenómenos, que não acontecem no vácuo. Uma análise global tem permitido estabelecer um paralelismo entre pobreza e casamento infantil. Por outro lado, estas práticas afetam as raparigas de forma desproporcional, promovendo o abandono escolar, a gravidez precoce, e colocando-as em maior risco de violência doméstica, de género, sexual e reprodutiva – cujo reporte tem permitido, aliás, aferir e registar situações de casamento precoce ou forçado.

Ainda que não seja uma realidade visível no dia a dia para todas as pessoas, temos enquanto sociedade um papel a desempenhar, não só na sensibilização, como no combate a estas práticas. Importa também envolver diversos setores e profissionais, da saúde e educação, à juventude e desporto. O Livro Branco vem precisamente apresentar um conjunto de recomendações que pretendem apoiar uma tomada de decisão informada mas também lançar o debate entre todas as partes interessadas, entre as quais, o Governo.

Embora limitado, este estudo pretende servir de ponto de partida, criando uma base de informação e de possíveis soluções. Há em Portugal uma clara falta de informação e confusão entre conceitos, pelo que estes números devem agora ser analisados, mais dados devem ser recolhidos, políticas públicas devem ser desenvolvidas e a sua implementação monitorizada.

O que está em causa com os casamentos infantis, precoces e/ou forçados é um futuro de oportunidades, autonomia, liberdade sexual e reprodutiva, e em último caso, direito à escolha informada. Que este Livro Branco seja um passo decisivo de uma ação que se pretende conjunta, para que todos os rapazes e raparigas possam antes encarar o seu futuro como um livro em branco.

O Observador associa-se aos Global ShapersLisbon, comunidade do Fórum Económico Mundial para, semanalmente, discutir um tópico relevante da política nacional visto pelos olhos de um destes jovens líderes da sociedade portuguesa. Ao longo dos próximos meses, irão partilhar com os leitores a visão para o futuro nacional e global, com base na sua experiência pessoal e profissional. O artigo representa, portanto, a opinião pessoal do autor enquadrada nos valores da Comunidade dos Global Shapers, ainda que de forma não vinculativa.