Pena que o Manifesto não diga alguma coisa sobre o perfil das personalidades que o assinam: alguns nomes não reconheço, e fico com a impressão de haver uma esmagadora maioria do centrão político, e dentro deste do PS. Todavia, também lá estão Francisco Rodrigues dos Santos e Diogo Feio, por exemplo, assim como António Barreto, o conhecido magistrado da opinião que nem por ser, ou se dizer, de esquerda, pode ser suspeito de defender corruptos. 50 era ao princípio, que agora há outros tantos, entre eles Garcia Pereira, que podendo ser acusado de muitas coisas nenhuma é falta de seriedade ou independência.

O texto é prolixo, incluindo patacoadas discursivas (“intervenções de carácter estrutural” ou “múltiplos desafios da actualidade”, por exemplo), e decerto tem partes que não subscreveria, como a relativa à “participação activa de grande parte da comunicação social na quebra do segredo de justiça” (quem quebra o segredo é quem o detém, não quem o noticia), ou a recorrente referência ao “Povo” sem substanciação (o Povo em abstracto não é  mesma coisa que o povo em concreto, e porque este último tem, em todas as sociedades e também na nossa, pulsões justicialistas, falar em nome dele sem mais é tomar a parte pelo todo e deixar de lado a trabalheira da persuasão e argumentação).

Porém, não inventa um problema para defender interesses escusos, mesmo que eles existam: enuncia-o.

E o problema é que, como bem diz o texto,

Se a morosidade, designadamente na jurisdição administrativa e tributária e na investigação criminal, é o fenómeno mais persistente – e inadmissível numa sociedade democrática, uma vez que na prática acaba por pôr em causa a própria realização da justiça -, existem muitas outras falhas que em nada são compatíveis com o Estado de Direito Democrático, nem com a eficiente gestão dos avultados recursos públicos a ela afetos (que comparam bem com outros países europeus), nem com o respeito pelos direitos e interesses dos destinatários do sistema de justiça, que não é menos importante para eles do que o sistema de ensino ou o sistema de saúde para os respetivos utentes.

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O Manifesto enumera as medidas que entende serem necessárias, mas não é, nem seria de esperar que fosse, muito detalhado. No dia em que parte delas forem densificadas (peço desculpa pela palavra, mas logo que o assunto envolva juristas sinto-me autorizado a abundar no palavreado pedante) direi o que me pareça. No essencial, tudo gira em volta de uma circunstância e três perguntas:

  1. A circunstância: O Estado (quer dizer, os seus agentes e representantes) está presente em todas as esquinas da vida, incluindo económica, desde 1986 dispondo de abundantes fundos que políticos e agências governamentais distribuem sob o chapéu de generosos fins de propagandeado interesse público. Só por milagre é que num país como o nosso, em que o favor e a cunha são apenas as faces mais visíveis de um fundo atávico de dependência dos favores do Orçamento, é que é possível imaginar que a corrupção (a alegada e a real) que existe é apenas a que chega às notícias. Uma casa onde se vejam três ratos não tem apenas três, tem dúzias. E é por o eleitorado saber que é assim que está disponível para comprar o discurso do “eles” (isto é, os políticos) serem uma cambada de ladrões
  2. O Ministério Público abusa ou não abusa dos seus poderes?
  3. Se abusa, as medidas que os coarctem são ou não são pior emenda que o soneto, isto é, podem ou não traduzir-se na impunidade dos detentores do Poder?
  4. Por que motivo há um desequilíbrio evidente entre esquerda e direita na censura ao MP, a segunda encontrando razões, por vezes através de vozes respeitadas e geralmente sensatas, que compreendem e desculpam os desmandos?

Por partes:

Uma solução óbvia para diminuir os casos de corrupção seria diminuir o peso e os poderes do Estado: ninguém corrompe para obter o subsídio que não existe, a licença ou o alvará que não é precisa, a colocação num lugar público que não depende de decisões arbitrárias, e um longo etc. Mas essas são escolhas políticas, que cabem na respectiva luta, a que chamamos democracia. E esta não é o regime em que o Povo escolha bem por ser depositário de alguma lucidez que decorra da soma das inépcias individuais, é aquele em que o eleitorado – e só ele – detém legitimidade para delegar o exercício do Poder e revogar ou a não a delegação periodicamente. A União Europeia criou o instrumento deletério das transferências de fundos e raros são os que os veem com maus olhos; e as nossas sucessivas escolhas têm sido versões diferentes da social-democracia. É com isso que se tem de viver e imaginar que há um grupo profissional que garante a lisura de processos e a seriedade dos desempenhos dos eleitos só seria possível se as pessoas desse grupo nascessem com um halo na cabeça, por fora, e raios divinos de imarcescível sabedoria, por dentro.

E então, há ou não há abusos? A ideia de que os políticos são, salvo prova em contrário, generalizadamente corruptos, não só não é verdadeira  como se se aceitar o princípio, que o Ministério Público tem vindo a demonstrar ser o que o norteia partes dele, de que é melhor vigiar todos para apanhar os que se desviem do seu múnus, do que estamos a falar é de um Estado policial, sem que o dito Ministério (ou uma fatia encarnada nos magistrado xis, ípsilon e zê, cujos nomes o mais das vezes nem chegamos a conhecer) se tenha dado ao incómodo prévio de fazer uma revolução com aquele propósito. E se os abusos por parte de quem tem como missão ser titular da acção penal mas começa por desrespeitar as leis cuja ofensa tem por missão perseguir estreitar-se-á o leque dos que estejam dispostos a fazer uma carreira política quando possam ter outra.

Os magistrados do Ministério Público são pessoas como as outras, sujeitas às mesmas paixões e insuficiências. O que justifica a independência dos juízes (que, esses sim, são verdadeiros magistrados) não é serem perfeitos, é ela ser necessária para as sentenças não virem inquinadas por relações de força das partes, mesmo que uma delas seja o Estado, e em todo o caso poderem, via recurso, ser revistas.

As decisões dos agentes do MP têm, em alguns casos, de ser convalidadas pelo juiz de instrução. Mas ainda recentemente um edil esteve preso sem ser ouvido, muito para lá dos dois dias limite, sem que tenha sido afinal pronunciado por coisa alguma. Fosse apenas um caso e seria demais. Mas são inúmeros e se há um bem que tem decorrido desta saga é o de perguntarmos a nós mesmos (quem pergunta – somos poucos): se é assim que se tratam os poderosos, o que não se fará com os pobres diabos que ninguém conhece? Algumas estatísticas aterradoras, em matéria em que a opacidade é a norma, são referidas, por exemplo, neste artigo de Garcia Pereira.

Que o Ministério Público tem interferido decisivamente no processo democrático provocando eleições e influenciando-lhes presuntivamente o resultado só seria aceitável se estivéssemos a falar de acusações consistentes e urgência nos procedimentos. Não é o que tem acontecido: a ideia de que Costa poderia perfeitamente ter mantido o lugar sob o manto negro de uma suspeita assumida publicamente pela PGR pode até fazer sentido à luz do oportunismo, que se lhe atribui provavelmente com razão, de aproveitar a acusação para se pôr ao fresco para outros voos. Mas, objectivamente, a suspeita feriu-o, naquela maré, mortalmente, e após tanto tempo volvido não há qualquer resultado palpável, acusação, indiciação, desistência, o que seja – uma intolerável manifestação de autarcia, insolência e descaso. Aceitar como estando na ordem natural das coisas que, por todos os cidadãos serem iguais perante a lei, o MP não tenha nestes casos especiais deveres reforçados de diligência, é o mesmo que dizer que os ronceirismos de uma burocracia iluminada se sobrepõem a quaisquer outros valores.

As soluções aventadas implicam a clarificação de um equívoco: autonomia do MP não é a mesma coisa que autonomia de cada um dos magistrados. Porque, se fosse (e, aparentemente, tem sido) poderes majestáticos e institucionais seriam depositados ao acaso nas mãos de funcionários que na prática não respondem pelas consequências dos seus actos, sendo que estes implicam decisões sobre prisões (ignoro, e não preciso de saber, se técnica e pudicamente estas devem ser designadas por “detenções”, e a completa falta de respeito pelo respectivo prazo legal, em matéria sensível como a da liberdade física, é a medida da naturalidade com que já se está numa rampa deslizante), investigações desnecessariamente intrusivas, fugas de informação que nunca dão lugar a apurar-se quem as praticou, e todo um espectáculo deprimente de um vendaval de suspeitas, demolição de reputações e investigações intermináveis – que acabam em nada como se os milhões que os contribuintes gastam a perseguir gambozinos não devessem obrigatoriamente implicar informação pública sobre desempenho, em vez da litania de lamentos em que todos se queixam de tudo sem que ninguém seja responsável por nada.

Alguém deve, tem de, responder; se o topo da hierarquia não tem poderes deveria tê-los; se o exercício de tais poderes faz correr o risco de abusos internos deveria haver mecanismos para, sem riscos sérios, o magistrado decaído nas suas iniciativas e decisões os denunciar; e se a personalidade concreta de um PGR com poderes, e responsabilidades, reforçados, pode originar a suspeita de poder ser mais uma afloração do situacionismo e da acomodação com o estado das coisas na gestão da coisa pública, a resposta haverá de estar no processo de selecção: deve haver quem pareça ter perfil para resistir ao exame de uma maioria qualificada da AR, do PR e da opinião pública e a quem, no fim do mandato, se possa pendurar ao peito uma medalha, ou pelo contrário enfeitar de alcatrão e penas.

Resta explicar de onde vem esta tolerância para com o Estado dentro do Estado em que o MP se transformou, por parte de pessoas que não apreciam o Estado de Direito menos do que eu.

Vem desde logo da constatação de que a maioria das investigações, ou suspeitas, incide sobre socialistas. E como a estagnação do país e a degradação dos serviços públicos resultam das políticas socialistas, que Sócrates, Costa, e uma extensa entourage de personagens menores, encarnam, tudo parece pouco para remeter esta quadrilha para os cafundós da história. Acresce que a comoção da esquerda nunca teria lugar se quem está em exposição na vitrine dos horrores fossem políticos de direita.

Apoiar o Manifesto quando estão lá assinaturas de pessoas que, se os palpos-de-aranha fossem de outras tribos, nomeadamente do PSD, brilhariam pela ausência, e que verdadeiramente o que querem é tratar o Estado como se fosse uma coutada de arranjos? Credo, dizem não poucos dos meus correligionários no melhor lado do espectro.

E vem também do desejo de não deixar o terreno do dedo em riste da indignação, em exclusivo, para o justiceiro Ventura, que tem no combate à corrupção e na defesa da autoridade policial dois fonds de commerce rendosos.

Mas isto é um equívoco da parte de alguns dos outros selvagens da minha tribo. E para se o perceber refiro apenas um caso:

Há dias a CNN divulgou escutas no processo Influencer em que Costa aparece a ligar a João Galamba ordenando a demissão, por raciocínios de índole politiqueira, da presidente executiva da TAP, depois da polémica indemnização de 500 mil euros à ex-administradora Alexandra Reis.

Surpresa? Não. Com os costumes portugueses é impossível que o Governo não interfira na gestão das empresas públicas: se é ele que escolhe os dirigentes é também possível demiti-los, seja por razões de baixa política, como no caso, seja por outras.

É crime? Não, não é, a menos que se queira criminalizar comportamentos políticos lesivos do interesse público. Caso em que não apenas periodicamente se trancafiariam ministros de pastas sensíveis (ou presidentes de câmara, por exemplo) como os deveres de fiscalização do Governo seriam divididos entre o Parlamento e o Ministério Público, cuja missão seria escutar todos os políticos com responsabilidades executivas.

E como a definição do que seja o interesse público é, ela própria, passível de discussões, teríamos a judicialização da política, em tais termos que se poderia falar de um regime como o iraniano, com a diferença de os clérigos serem magistrados e não lerem todos, nem interpretarem do mesmo modo, o Alcorão.

Chega, e não é do partido que estou a falar.

Nota editorial: Os pontos de vista expressos pelos autores dos artigos publicados nesta coluna poderão não ser subscritos na íntegra pela totalidade dos membros da Oficina da Liberdade e não reflectem necessariamente uma posição da Oficina da Liberdade sobre os temas tratados. Apesar de terem uma maneira comum de ver o Estado, que querem pequeno, e o mundo, que querem livre, os membros da Oficina da Liberdade e os seus autores convidados nem sempre concordam, porém, na melhor forma de lá chegar.