Raymond Aron, o importante pensador conservador liberal ou liberal conservador do século XX, dizia que uma das forças do marxismo era “poder ser explicado em cinco minutos, em cinco horas, em cinco anos ou em meio século”. O mesmo Aron, num comentário a L’Ère des Tyranies, de Élie Halévy, escreveria que “o comunismo era a transposição e a caricatura de uma religião de salvação”.
Estes dois comentários sobre o marxismo como pensamento e o marxismo como ideologia são importantes para explicar o seu sucesso entre os intelectuais e as massas do Ocidente e do mundo, durante o quase século e meio que vai do Manifesto Comunista (1848) à queda da URSS (1991). E até a persistência das suas ideias e princípios, a sua extraordinária sobrevivência como ideologia à experiência e ao fim do “socialismo real”.
As relações e sobreposições entre Cristianismo e Marxismo foram tratadas sistematicamente por Alasdair MacIntyre, um dos pais da Nova Esquerda britânica (mais tarde arrependido e convertido ao catolicismo), em Marxism & Christianity. MacIntyre, hoje nonagenário, foi um intelectual engagé e controverso, com colaborações simultâneas em publicações como a New Left Review e o Encounter.
Em vários dos seus escritos lembrou as duas funções que a religião desempenhava para Marx: por um lado, confirmava a ordem política, ao “sugerir que a ordem era de certo modo legitimada pela autoridade divina”; por outro, através da ideia e da esperança no Paraíso post mortem, consolava os pobres e oprimidos com a felicidade futura e desmobilizava-os para os combates deste mundo. Isto levara o autor de O Capital a concluir que “a primeira condição para a felicidade do povo era a abolição da religião”. E na nova ordem comunista, naturalmente, a religião seria dispensável, já que desapareceria a ordem capitalista – os opressores e os oprimidos – e até o Estado viria a ser também dispensado.
Marx e o Sermão da Montanha
Outros companheiros e discípulos de Marx escreveram sobre o assunto: Engels encontrava pontos comuns entre o primitivo cristianismo “expressão religiosa de uma comunidade oprimida, lutando pela emancipação”, e o movimento operário, enquanto Kautsky se adiantava para considerar que o cristianismo pré-constantiniano admitia que essa sociedade ideal se podia realizar e concretizar neste mundo.
A grande atracção popular e social do marxismo e do comunismo estiveram nessa semelhança aparente com os ideais cristãos de justiça, de solidariedade e de comunidade, expressos em textos evangélicos como o Sermão da Montanha, com a sua enumeração das bem-aventuranças.
Enquanto o liberalismo e o capitalismo confiam nas artes da iniciativa privada e da mão invisível como elementos do progresso social e garantes da liberdade e do desenvolvimento, o comunismo proclamava a vontade de impôr, recorrendo à força, uma ordem de justiça que podia assemelhar-se à ordem cristã. Por isso, ainda hoje, quer entre os marxistas sobreviventes, quer entre alguns cristãos, a ideia de assimilação ética destas duas correntes aparece como normal, sendo a desconexão atribuída ao acaso, à necessidade e a erros humanos de aplicação.
Esta percepção omite duas questões essenciais: primeiro, que Marx é um seguidor do materialismo de Feuerbach e ele próprio um materialista que nega a categoria de “ser” a tudo aquilo que não é apreensível pelos cinco sentidos. Isto devia ser decisivo para congelar paralelos a despeito das afinidades utópicas milenaristas manifestados, por exemplo, na simpatia de Marx e Engels por Thomas Müntzer, a mais radical figura da dissidência protestante, que chefiaria os anabaptistas e a revolta dos camponeses contra os príncipes e que, depois da derrota, acabaria torturado e morto em Mühlhausen pelos príncipes apoiados por Lutero.
No plano filosófico, Marx e os marxistas consideravam-se herdeiros dos Iluminados e Enciclopedistas do século XVIII, do racionalismo e do cientismo; e, consequentemente, atacaram, proibiram e perseguiram as religiões, todas as religiões. Assim, tal como os republicanos franceses da Convenção e do Terror, os discípulos de Marx, chegados ao poder, dedicaram-se a liquidar sacerdotes e fiéis de toda e qualquer religião, visto que todas eram desnecessárias
Pode dizer-se, com verdade, que os objectivos justicialistas do comunismo foram também traídos ou corrompidos por alguns líderes comunistas, humanos como quaisquer outros. Mas, no caso do marxismo-leninismo, a própria natureza dualista da evolução social, baseada na luta de classes, no conflito permanente de uma narrativa maniqueísta em que os bons deviam exterminar os maus e as raízes do mal, nunca poderia harmonizar-se com o cristianismo. Tudo isto se tornou muito mais grave e violento nos socialismos reais, com a abolição da propriedade privada – logo de qualquer base económica de independência face ao poder – e das religiões. Talvez por isso as ditaduras de esquerda, republicanas e socialistas, tenham sido, historicamente, muito mais repressivas e letais do que as de direita, à excepção do totalitarismo identitário nacional-socialista. De resto, qualquer regime ditatorial ou autoritário de direita, do fascismo italiano ao salazarismo português, foi muito menos sanguinário que os seus equivalentes comunistas, embora seguidores convictos ou arrependidos das utopias e distopias comunistas continuem a proclamar a superioridade moral de tais regimes – como se as experiências históricas, da URSS à China maoista, não tivessem existido e alguém nos garantisse que os seus princípios, outra vez postos em prática, teriam outro desfecho.
Da douta ignorância
Quanto à notória facilidade de explicar rapidamente o marxismo, Aron concluía que “era possível a quem não sabia nada de história do marxismo ouvir com ironia alguém que tinha passado a vida a estudá-lo”.
Infelizmente, esta possibilidade estende-se, entre nós, a quase tudo – não só ao marxismo mas também ao fascismo, ao liberalismo, ao capitalismo, ao nacionalismo, à História de Portugal e até ao Império Romano e às Invasões Bárbaras. Há gente que aprendeu tudo em cinco minutos – e não estão só nas redes sociais e nas caixas de comentários, mas têm voz nos media populares e de referência e nos debates públicos; gente que tem lugar cativo entre a elite comentarial, dissertando e opinando sobre tudo, geralmente segundo as regras do maniqueísmo dominante e dizendo mais ou menos o mesmo.
O marxismo tem a vantagem de ser uma receita fácil, quase tão fácil como a explicação do mundo pelas insídias do Demónio, para os primitivos, ou da economia pela mão invisível, para os sofisticados. O mundo é injusto e há duas classes: o proletariado, que é explorado e a burguesia, que o explora; são os modos de produção e desenvolvimento das forças produtivas que determinam as etapas do desenvolvimento histórico, feudalismo, capitalismo, socialismo (com um período embaraçoso e inominado entre o feudalismo e o capitalismo). Tudo se joga a partir de uma dogmática de categorias estabelecidas modernamente pelo “marxismo analítico”, como a de Gerald Cohen em Karl Marx’s Theory of History: A Defence.
Confesso que sou um velho leitor de Marx, autor com quem convivo há mais de 60 anos e que, confesso também, tem textos interessantes e por vezes até inesquecíveis, na sua síntese provocatória – “o moinho de vento deu a sociedade do suserano, o moinho a vapor dará a sociedade do capitalismo industrial”.
Mas esta relação entre forças produtivas e relações sociais, ou seja, entre possibilidades tecnológicas, infraestruturas económicas e modelos sociais determinantes das relações humanas, subordinada à economia, esqueceu a política e a autonomia do poder político. Assim, apesar das reservas do próprio Marx, sublinhando a necessidade da “prática revolucionária” e o papel do proletariado para acelerar “o acontecer da História”; apesar das reflexões de Gramsci sobre o Estado e o “aparelho ideológico”, para muitos comunistas e anticomunistas o marxismo acabou por ficar na versão da Vulgata, que é a do determinismo economicista.
Semelhante determinismo, quer na versão paradisíaca dos comunistas quer na versão pessimista dos anticomunistas, tem a vantagem de ser inelutável, já que a História e as forças mais ou menos cegas que a conduzem, se encarregarão disso.
Hoje, o marxismo-leninismo da clássica luta de classes – Burguesia versus Proletariado – jaz morto e enterrado. E não só pelo reaganismo, pelo tatcherismo e pelo fim da União Soviética, mas pelas próprias esquerdas radicais, que abandonaram as causas dos trabalhadores pelas pequenas causas de outros oprimidos e de outras opressões.
Mas a persistência do paralelo religioso subsiste, agora já não tanto na laicização do Sermão da Montanha, mas mais na deturpação da visão de Isaías – quer na sua primeira fase justiceira, quando “o espírito da sabedoria e do entendimento fere os tiranos com os decretos da sua boca e os maus com o sopro dos seus lábios” (e aqui o activismo dos “sábios e entendidos” continua); quer na sua segunda fase idílica, de planetária harmonia final, em que “o lobo habita com o cordeiro, o leopardo se deita ao lado do cabrito e o leão come palha como o boi”. Também S. Paulo, quando escreve que “não há homem nem mulher, grego ou judeu, escravo ou homem livre porque todos somos um só em Jesus Cristo”, é consciente ou inconscientemente banalizado na idílica indiferenciação truncada dos novos marxismos imaginários. O que se mantém é o voluntarismo da luta e a tentativa de substituir a religião pela realização pagã e forçada na terra de uma comunhão com coisa nenhuma e de um estado paradisíaco sem Deus.