Os recentes acontecimentos que abalaram a governação do país não só escancararam os bastidores da política nacional, como também expuseram uma verdade incómoda: em Portugal, realizar qualquer empreendimento é uma odisseia burocrática sem fim. No entanto, parece haver um atalho, um caminho pavimentado pela influência e contactos privilegiados, em que a figura do “melhor amigo” surge como chave mestra para abrir portas, à maioria inexpugnáveis. Ou seja, é necessário conhecer-se as pessoas certas nos sítios certos, ou nada se faz. Estamos a falar da malfadada cunha, mas quem poderá condená-la se esta for a única forma de se fazer alguma coisa neste país, ou até, por este país?

Curiosamente, para as pessoas certas, o “melhor amigo” deveria ser uma figura redundante. As pessoas certas não deveriam precisar de tais relações especiais. A não ser, claro, que elas próprias tirem disso algum benefício particular (o que, por agora, não parece ser o caso), ou reconheçam esta universal verdade portuguesa e queiram fazer chegar até si as propostas necessárias a agilizar e a concretizar, porventura, até mesmo tendo em mente o melhor interesse nacional. Se assim for, não fará isso delas as “melhores amigas” do país? Levanta-se então a questão: será esta a forma correta de conduzir a política? A Justiça parece ter dúvidas, mas perante um contexto burocrático adverso e uma prática tão enraizada, a moral do processo poderá desvanecer-se perante o superior interesse dos fins. Os recentes acontecimentos são só exemplares das perversões que essa intrigante verdade é capaz de desencadear.

Um Presidente da República (PR) envolto em rumores num caso de favorecimento de um tratamento milionário a duas cidadãs estrangeiras aceita a demissão de um Primeiro-Ministro (PR) de um governo maioritário que enfrenta suspeitas de favorecimento a um suposto Projeto de Interesse Nacional. Um ministro seu protegido, o seu chefe de gabinete e o seu autoproclamado “melhor amigo” são acusados de prevaricação, tráfico de influências e corrupção, a par de dois responsáveis do projeto em causa e do Presidente da Câmara onde o mesmo se irá (iria?) realizar. No palco parlamentar, o ministro arguido (que, já agora, tinha despeitado o PR num outro caso em que este pediu a sua demissão e o PM não a concedeu), discute o Orçamento de Estado, dizendo recusar-se apresentar demissão (não obstante, ter já, entretanto, sucumbido), mesmo quando o governo está já demissionário. E, como uma peça de teatro bem ensaiada, o PR torna-se o “melhor amigo” da nação ao adiar, ainda que de uma forma constitucionalmente duvidosa, a oficialização da demissão para fazer aprovar o Orçamento de Estado, sempre em prol do superior interesse do país.

Esta narrativa, digna de um enredo ficcional, é, na verdade, a realidade política que Portugal enfrenta, mas não é de agora: ela resulta do facto de vivermos num país fortemente centralizado, hierárquico e burocrático, em que a iniciativa privada esbarra, amiúde, com portas inexpugnáveis e cuja abertura depende grandemente do capital político. E num país em que o tempo do socialismo no poder se confunde com o próprio poder, não há de ser o Estado o “melhor amigo” dos portugueses? Não serão, portanto, os acontecimentos em curso a mais recente fase da batalha entre instituições inclusivas vs. extrativas, rumo a um país mais democrático?

Fica a interrogação: será o “melhor amigo”, essa instituição extrativa e paternalista, parte essencial da fórmula necessária para se fazer política em Portugal ou é chegada a hora de questionar a moral por de trás das alianças e amizades que fundamentam o poder, questionando o que as motiva? Há já propostas de regular o lobby, o que poderá efetivamente elevar a democracia a uma nova fase. Porém, há também que se questionar as novas lideranças, possíveis e necessárias, para que o passado não se repita. Acresce a necessidade de repensar a própria Justiça e as suas agendas latentes que não abonam à separação de poderes. Enquanto as cortinas se fecham, o país aguarda, assim, respostas e, quem sabe, a possibilidade de um novo cenário político, onde a ética e a transparência prevaleçam sobre os jogos de bastidores e o desenvolvimento do país não dependa da figura do “melhor amigo”, seja para o interesse de alguns, seja para o superior interesse de todos.

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