Estamos a três dias do 25 de Novembro. Ocasionalmente revisito a biografia de Lucas Pires cuja actualidade do pensamento é sempre surpreendente. Dizia ele que o 25 de Novembro foi um resultado em que «vencedores e vencidos querem o socialismo, tal e qual o mesmo», pelo que o país teria, assim, caído “no mais fundo do vazio”. E, segundo ele, “quem não for socialista é que precisa de ter o ónus da prova, apesar de o socialismo democrático não existir em parte nenhuma do mundo e, entre nós, só ter dado, como Governo, más provas”.
Enquanto Sá Carneiro recuperava de uma profunda depressão no Sul de Espanha, o PSD, sob a liderança de Emídio Guerreiro, demonstrava um fervor revolucionário que, por vezes, ultrapassava mesmo o dos socialistas. Paralelamente, o CDS, ainda a tentar afirmar-se e a lutar pela sobrevivência, limitado ainda aos seus 7,6% era liderado por Freitas do Amaral, que não tinha as características nem as convicções para encabeçar qualquer tipo de movimento nacional. Este foi, para o bem e para o mal, o 25 de Novembro do PS de Mário Soares. Mas, como mais uma vez referia Lucas Pires, foi a vitória do ‘bom socialismo’ sobre o ‘mau socialismo’, uma solução que não era peixe, nem carne, uma espécie de amor impossível entre ‘o horror do pecado liberal’ e ‘o inferno soviético’, para agradar a todos, desde os mais socialistas, ainda iludidos pelo marxismo, até aos mais sociais-democratas, que, apesar de tudo, vislumbravam méritos na economia de mercado.
O 25 de Novembro cumpriu apenas um dos D do 25 de Abril – Democratizar, uma vez que a Descolonização estava (mal) feita e o Desenvolvimento tardou muitos anos a alcançar. O 25 de Novembro foi, indiscutivelmente, uma data que nos afastou do perigo de uma ditadura comunista ou do terceiro-mundismo marxista. Uma data que definitivamente criou uma fronteira clara entre dois polos: o vencedor, que professava a democracia liberal semelhante às do resto do mundo ocidental; e um vencido, totalitário, que acreditava que o poder só se conquistaria através de uma revolução. Uma data que expulsou Álvaro Cunhal e o PCP do Governo do País, que substituiu um Corvacho por Pires Veloso, um Rosa Coutinho por Jaime Neves e por fim, um Otelo (ao qual me apetece acrescentar um enorme rol de adjectivos) por Ramalho Eanes. Só com o 25 de Novembro foi possível criar as condições para eleger a primeira Assembleia Legislativa e o primeiro Governo Constitucional, numas eleições que, apesar do Pacto MFA/Partidos, só não foram absolutamente livres porque deixaram de fora alguns partidos à direita. E apenas depois da aprovação de uma Constituição limitadíssima pelo Acordo da Plataforma Constitucional, cujo texto e o preâmbulo pareciam mais saídos de um País satélite soviético do que de uma democracia ocidental pluripartidária, consagrando nela as conquistas revolucionárias.
Por isso, o 25 de Novembro consolidou o 11 de Março e as conquistas irreversíveis do PCP. O princípio da irreversibilidade das nacionalizações demorou treze anos a sair da Constituição. As primeiras tentativas para abrir sectores à iniciativa privada foram feitas ainda pelos primeiros Governos da AD, mas foram bloqueadas pelo Conselho da Revolução, outra excentricidade constitucional saída do PREC. Só o fim do Conselho da Revolução e a urgência de preparar o País para a entrada na Comunidade Europeia obrigaram às alterações da Constituição e, mesmo assim, a primeira incompleta, o que obrigou a uma nova revisão pouco tempo depois, em 1989. Hoje, quase 50 anos depois da promulgação da Constituição, apesar das dezenas de privatizações parciais ou totais, ocorridas desde os anos 90 até 2016, ainda há quem discuta, à esquerda, mas também à direita, se a TAP, ou outras empresas públicas, devem ou não ser privadas.
A Agricultura e a Reforma Agrária, tradicionalmente o cavalo de batalha de todos os marxistas, foram outro problema. O Agricultor representa a livre iniciativa, o afastamento do poder central, o empreendedorismo e a propriedade privada. Os agricultores foram sempre os inimigos de todos os marxistas, maoístas, leninistas, estalinistas e outros “istas”. O mote da Reforma Agrária foi a luta contra os grandes latifundiários. No entanto, daí resultou como consequência, a concentração ainda maior da propriedade já que juntavam várias unidades colectivas de produção, num modelo tipo kolkhozes soviéticos. Apenas em 1990, Luís Marques Mendes, porta-voz do Conselho de Ministros, anunciou a extinção da zona de intervenção da reforma agrária. Nessa altura ainda existiam 150 mil hectares ocupados por UCP, mesmo apesar de a maioria das ocupações ter ocorrido em Setembro e Outubro de 1975, na fase mais radical da deriva comunista.
As centenas de detenções de presos políticos foram, felizmente, mais rapidamente revertidas, mas ainda assim demoraram alguns meses, e só no início de 1976 foram libertados os últimos detidos, apelidados de sabotadores, presos de forma arbitrária e sem acusação, com mandados de captura em branco e quase sempre sem qualquer protecção jurídica de um advogado de defesa, e sujeitos a isolamento e proibição de contactos com a família. Existiam, miseravelmente, mais presos políticos a 24 de Novembro de 1975 do que a 24 de Abril de 1974.
Se a 11 de Março o PCP tivesse procedido como o Partido Comunista Espanhol, participando na construção da democracia pluripartidária, não teríamos tido o PREC, nem o Verão quente, nem o Copcon, nem teríamos assistido ao avanço para a segunda fase da revolução socialista. Após o 25 de Novembro, o PCP sofreu uma enorme derrotade que tardou mais de um ano a recuperar, subjugou-se às regras democráticas, perdeu peso político, foi neutralizado nos quartéis, mas continuou a dominar a rua, a manipular os sindicatos, porque, em bom rigor, o contra-golpe de 25 de Novembro parou precisamente quando o PCP se salvava, como sugeriu Melo Antunes. No VIII congresso do PCP, o primeiro após o fim da utopia comunista, foi aprovado um documento intitulado “A Revolução Portuguesa: o passado e o futuro” que explicava aos militantes que as conquistas da revolução eram irreversíveis. Algumas quase que o foram, e durante anos a CGTP conseguiu por várias vezes paralisar o País, nomeadamente na primeira greve geral, a 12 de Fevereiro de 1982 – um movimento sindical que se repete sempre que a direita está no Governo. Ainda hoje, os seus 4% nas urnas traduzem-se numa força sindical absolutamente desproporcional, manifestando-se em greves sem sentido ou numa legislação laboral que permite aos sindicatos quase tudo. Mas, coerentemente, nas comemorações do 25 de Novembro, o PCP optou por não estar presente. Teria preferido a evocação do 11 de Março, provavelmente. Se estivesse naquelas, seria tão estranho como se a União Nacional descesse a Avenida a festejar a cantar o Grândola Vila Morena.
À esquerda do PCP, quase ninguém se conformou com a democracia recém-nascida. As eleições eram uma subjugação burguesa: “Não é através de eleições que se resolvem os problemas fundamentais das classes trabalhadoras”, “só com a insurreição armada é possível as classes trabalhadoras conquistarem o poder”, dizia Isabel do Carmo ,que em conjunto com Carlos Antunes liderou o PRP-Brigadas Revolucionárias, até que em Junho de 1978 foram presos. Depois, no restolho do PRP-BR nascem as FP25, responsáveis por cerca de 20 mortos, dos quais 14 vítimas inocentes. Ainda assim, alguma imprensa foi-lhe cúmplice e o regime foi (demasiado) benevolente com o fenómeno terrorista que se viveu em Portugal. Otelo foi amnistiado duas vezes pela Assembleia da República: a primeira, em 1979, que perante o decreto Lei n.º 74/79 pretendia amnistiar todas “as infrações criminais e disciplinares de natureza política…” ocorridas durante o PREC; e a segunda, em 1996, uma lei feita à sua medida, que amnistiou os atentados, os roubos e os assassinatos praticados pela liderança das FP-25 de Abril. Apesar de tudo isto, entre as duas amnistias, em 1983 Otelo foi condecorado por Ramalho Eanes, um ano antes de ser preso, na famosa operação “Orion”, e quando mesmo o Presidente da República e todo o país político já sabia que Otelo integrava ou liderava mesmo as FP25. Isabel do Carmo, pela liderança do PRP-BR, foi também amnistiada pela mesma Lei n.º74/79 de 23 de Novembro, mas não ilibada como a mesma afirma, apesar de a lei excluir expressamente “as infrações cometidas com emprego de bombas e outros engenhos explosivos”. Posteriormente, em 2004, foi condecorada com a ordem da Liberdade por Jorge Sampaio, no mesmo momento em que este condecorou também Camilo Mortágua.
Escreve Nuno Palma, no livro As Causas do Atraso Português que entre as causas para o nosso atraso, estão entre outras as “Instituições Atrasadas”, os “Condicionamentos Culturais” e num grau intermédio, os “Condicionamentos Políticos”. Nenhum destes temas foi resolvido no dia 26 de Novembro. O novo regime precisou ainda de 7 anos para expurgar a tutela das Forças Armadas, que através do Conselho da Revolução foram um travão ao desenvolvimento e à liberdade, e de 13 anos para lhe retirar o comunismo ou, como lhe chamavam, a via para o socialismo, claramente fora do seu tempo – curiosamente, no mesmo ano em que caía o muro de Berlim. O 25 de Novembro foi talvez o movimento possível, com demasiados compromissos e concessões, mas claramente uma oportunidade perdida para reformar o País, transformando-o numa economia moderna e competitiva, estatuto que só viria a alcançar 25 anos depois, na viragem do século e depois de duas intervenções do FMI e com muitos fundos europeus.
Por paradoxal que pareça, quase 50 anos após o 25 de Novembro, na primeira vez em que este é celebrado na Assembleia da República, algum dos seus autores, em total negação recusam-se a invocar a data. Vasco Lourenço, o presidente da sectária e envelhecida Associação 25 de Abril acusa a Assembleia da República de querer recontar a história. É certo que o País nunca reconheceu grande credibilidade à personagem. Fico na dúvida se será o mesmo Vasco Lourenço tolerante com os crimes do Copcon, o mesmo que alertou Otelo para este se afastar das FP-25, mas que depois foi sua testemunha abonatória no julgamento, em que o Otelo era acusado de ter criado e dirigido as FP25. Será o mesmo Vasco Lourenço que após a condenação de Otelo a 17 anos de prisão, posteriormente amnistiado, foi de braço dado, durante vários anos, com o ex-terrorista às cerimónias de Comemoração do 25 de Abril, como se aquele homem não tivesse um passado manchado de sangue e sofrimento? E será a Associação a que preside, vetusta, encarquilhada e sectária, a mesma que tem um general putinista e quase nenhuma mulher na sua direcção, cujos membros nascidos nos pós 25 de Abril serão residuais, e que só comparece na Assembleia da República a comemorar o 25 de Abril quando o governo é de esquerda?
O 25 de Novembro não tem dono nem tutela, nem o País precisa dessa superioridade moral, como que se a direita fosse uma espécie de herdeira do Estado Novo, só que adaptada às regras do jogo democrático.
No livro A Revolução e o PREC, que recomendo vivamente aos descrentes do 25 de Novembro, Luís Menezes Leitão lembra-nos uma frase de Kissinger: “As revoluções irrompem quando uma multiplicidade muitas vezes heterogénea de ressentimentos conflui no assalto a um regime desprevenido. Quanto mais ampla a aliança revolucionária, maior a sua aptidão para destruir os padrões vigentes de autoridade. Mas quanto mais abrangente for a mudança, mais violência será necessária para restaurar a autoridade, sem a qual a sociedade se desintegraria. Os reinos de terror não surgem por acidente, antes são inerentes à revolução”. E acrescenta, o autor, que eu subescrevo: “A Revolução de 25 de Abril de 1974 preencheu todas estas características”.
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