Nada me fazia esperar a sua morte. Falámos ao telefone pelo Natal. Não me disse que estivesse doente. Não sei quando se declarou a estúpida «doença prolongada». Quem me deu a triste notícia foi Khalid Jamal, numa mensagem muito simples e sentida: … Um mensageiro talvez improvável, como certas amizades. Deixo para outros mais habilitados na matéria – e não faltarão – a exposição dos seus méritos académicos e da sua vasta obra de sociólogo da economia e da política, historiador e pensador político. Por mim, o que tenho são recordações – e, como sempre na morte inesperada dos amigos, o remorso irredimível de não termos trocado aquelas últimas palavras que sempre sonhamos travar. Se soubéssemos…
Sempre o conheci por Luís – ao contrário da maior parte dos amigos dele que conheço, que o tratam (o tratavam) por «o Luís Filipe». Nos tempos da Faculdade não nos demos. Estávamos ocupados em atividades – digamos, antagónicas e, no caso de nós dois, distantes. É natural que abundem na sua necrologia as serôdias e habituais referências ao antifascismo e à prisão pela PIDE. Isso tudo vai longe. Do que me lembro é das coletas na Faculdade para levar laranjas aos presos políticos. Bons tempos. Éramos muito mais novos.
Voltei a falar com ele muito mais tarde, no princípio dos anos 90. O Paulo Castilho partia para um novo posto e houve uma reunião de amigos ou conhecidos comuns em minha casa. Também lá esteve o Júlio Castro Caldas – outro desaparecido que também fez parte do nosso tempo da Faculdade, da vida política do Luís e, bastante antes, da minha vida no Colégio de São João de Brito. O Luís telefonou-me depois para me dizer que tinha encontrado num alfarrábio qualquer um exemplar da «História do 28 de Maio» escrita depois do 25 de abril pelo meu pai, Eduardo Freitas da Costa, no exílio até morrer. Havia mais exemplares. Interessava-me?
A nossa conversa e os nossos frequentes encontros foram continuando pelos anos fora. A revista «Futuro Presente» que o Jaime Nogueira Pinto manteve de 1980 até 1996 publicou prosa sua, na época em fui diretor executivo – e o Luís, muito metódico e académico, fez questão de incluir no seu CV essa sua publicação. Fez parte do grupo fundador de um ambicioso Instituto Euro-Atlântico que não chegou a verdadeiramente descolar. Recentemente tinha-me dado o gosto de me convidar para uns seminários e conferências vespertinas que organizou no ICS – onde, entre coisas de proveito, tive também ocasião de estar sentado ao lado do comandante Contreiras a ouvir uma conferência, escrita, muito ortodoxa – e as observações improvisadas menos ortodoxas e bem mais interessantes do estupendo actor que é Otelo Saraiva de Carvalho, uma vocação transviada (é obrigatório ver o seu one man show sobre o 25 de abril que a RTP 2 há tempos emitiu, muito bem posto em cena por um cineasta francês).
E, nisto tudo, o Luís? Será preciso dizer que era uma inteligência fulgurante, um provocador brilhante – com as suas bizarrias? Fui depositário por uns tempos dos monstruosos volumes da sua notável tese de doutoramento – publicada depois num livro mais manejável. Era meu amigo e eu dele. A mensagem de Khalid Jamal diz tudo o que neste momento importa:
Estamos com ele em pensamento e através das nossas preces. Que Deus lhe reserve o eterno e merecido descanso.