Luís Aguiar-Conraria disse há dias na SicN, no 325º painel de entrevistados e comentadores sobre o assunto do Orçamento, que “isto é um Orçamento como os outros, não tem nada de especial tirando o IRS Jovem” etc. etc. Mais à frente, achou artificial a barulheira em torno de 1% do IRC, que é o cadinho grotesco (classificação minha) a que está reduzida a divergência entre o Governo e o PS.

“Como os outros”. Quer dizer, portanto, que de reformas nicles, de pequenos bodos às clientelas eleitorais muito, e de salganhada fiscal, escalões disto e daquilo, reduções que talvez não o sejam, isenções a granel e aumento encapotado da punção fiscal – muito. Resta a modesta esperança de que ao menos a trapaça das cativações que o genial Centeno inventou (orçamentava-se uma coisa para os jornais e a opinião pública, acrescentavam-se umas abébias para confortar as duas peças do extinto tripé esquerdista e depois executava-se outro Orçamento) não seja o ordinário da governação.

Um cidadão honesto e temente a Deus ouve estas trapalhadas e, no meio do nevoeiro geral, retém apenas o que lhe interessa directamente – o que vai acontecer ao salário, à pensão, às retenções do IRS, à conta da luz e pouco mais.

Faz muito bem. Que ninguém, excepto por obrigação de ofício ou em cumprimento de sentença judicial em que tal leitura apareça como pena alternativa à de prisão, se atreve a percorrer o calhamaço de quase 500 páginas onde a presença avassaladora do Estado aparece em todo o seu esplendor.

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O que tudo isto significa é que este Orçamento, descontando uma leve tónica sadia aqui e ali, poderia ser o do PS. E fica por saber se isso é o preço que o Poder actual decidiu antecipadamente pagar para não ver o documento chumbado, e ir provavelmente para eleições, ou se em matéria de reformismo pouco mais saberia dar. Como fica por saber, porque o assunto já é obsoleto e suposições contra-factuais cada qual faz as que quer, qual o grau de reformismo que teria sido possível (ou não, Ventura é, em matéria de opiniões, um tanto mercurial) em caso de aliança com o Chega.

Quem quiser um bom resumo encontra-o aqui, mesmo que do que se está a falar seja de uma proposta que pode ser esfarrapada na discussão na especialidade. O que não é de somenos: com um tão pequeno superavit previsto as oposições podem bem engendrar um défice em nome da Justiça, Igualdade, Não Sei Quê e outras grandiloquências.

Que estamos num pântano é portanto líquido, se o BdP ainda emitisse notas bem podia nelas estampar a cara do estadista Guterres.

O resumo acima mencionado não fala nisso mas o que se passou com o IRC é um poço de desesperança. A intenção inicial era, parece, reduzir a taxa de 21% para 15%. Depois, para 17%. E agora fica pelos 20%, se é que não vem embrulhada nas trapalhadas de ser uma coisa para umas empresas que fazem o que o Governo acha que devem fazer em matéria de aumentos salariais e investimentos, e outra no caso de fazerem o que decidam melhor lhes convém.

20% ou 21% é igual ao litro, de modo que será o caso de dizer que se era para essa merda (pardon my French) escusavam de se estarem a incomodar. Convém lembrar:

  1. As empresas não pertencem à comunidade, pertencem aos seus sócios e accionistas e a sua utilidade social decorre de, por existirem, criarem riqueza, não decorre de serem departamentos do Estado em que, com a cenoura de os gestores ou proprietários poderem ganhar um pouco mais, estes se sujeitarem ao pau de apparatchiks;
  2. Uma empresa mal gerida, se estiver em concorrência, ou tem resultados medíocres ou vai à falência. Porém, é o resultado comparativo que diz alguma coisa sobre o que é e não é boa gestão, não as opiniões de teóricos políticos e seus conselheiros economistas que, pela maior parte, não é seguro que soubessem gerir até mesmo um minimercado de bairro. Acresce que a realidade das situações é demasiado variada e rica para a corpos muito diferentes tentar vestir o mesmo fato de gestão;
  3. Diz-se que reduções da taxa de IRC ajudam apenas grandes empresas porque as pequenas e muito pequenas pouco ou nada pagam (a nova coqueluche do PS, Alexandra Leitão, só não fica rouca a papaguear isto, que imagina seja uma verdade absoluta, porque está habituada a discursos torrenciais onde pinta inspiradamente as visões do PS para tudo e um par de botas). Porém: a) As estatísticas que se invocam são fajutas porque não têm em conta milhares de empresas que não têm actividade (e portanto não pagam imposto) porque encerrá-las definitivamente é com frequência inexequível ou, ao menos, um cabo dos trabalhos para coisa nenhuma; b) Quando se diz que as grandes empresas têm estas e aquelas vantagens em matéria de salários que podem pagar, respeito das normas ambientais e outras, abertura à contratação de doutorados, investimento em investigação e desenvolvimento, e um longo etc., é contraditório sufocá-las com impostos. Cresce, diz o Fisco Socialista, que se conseguires ser grande nós cá estamos para te castigar;
  4. Ah, que captar investimento estrangeiro é que é o abre-te sésamo do verdadeiro desenvolvimento. Não temos capital, dizem desconsoladamente os sucessivos ministros da Economia que fazem viagens para promover o país, regressando cheios de promessas e boas intenções numa mão e nada na outra. Uma das mais fortes razões para isso, além dos tribunais e o seu arrastar de pés, são os impostos predatórios e a máquina tenebrosa da AT;
  5. Os lucros (palavra maldita e equívoca porque para ouvidos comuns é dinheiro que resulta da diferença entre custos e proveitos, na realidade podendo essa diferença não se traduzir no imediato em disponibilidades de fundos, por um sem número de razões difíceis de explicar a quem de contabilidade saiba apenas o que diz o dicionário) podem apenas ter três tipos de destinos: a) Serem aferrolhados, caso em que reforçam a capacidade de investimento e potenciam o crescimento, e os lucros, futuros; b) Ser distribuídos pelos sócios, caso em que a taxa de imposto que sobre eles recai será maior do que a do IRC; c) Serem, em parte, distribuídos por todos, ou alguns, trabalhadores, caso em que só de taxa social estamos a falar de quase 35%. E para algum pevidoso que venha dizer que aquela taxa não é um imposto e que tais prémios são custos recordo que o Estado é a ultima ratio de quem espera vir a ter uma pensão e que a possível poupança em IRC não cobre o custo da munificência; d) Serem investidos (os técnicos de contas e o legislador costumam dizer “reinvestidos”), caso em que o PS, generosamente, reduz o imposto. Dito de outra forma: Em vez de pagar o IRC pantagruélico vai o empresário “investir” onde o Estado, e não ele, acha melhor. Isto não é considerado uma porta aberta à corrupção nem torrefacção de fundos.

Percorrendo o Orçamento, a mesma mistura de estatismo, intervencionismo, dirigismo e despesismo. Que terá como resultado o mesmo arrastar de pés económico que nos faz ir teimosamente para a cauda da Europa de onde alguns países nos deixaram de fazer companhia.

O expatriado, graças a Deus, Costa, disse um dia a propósito de umas eleições que o rival Seguro, que queria esfaquear, ganhou, que era “poucochinho”. Este Orçamento também.

Nota editorial: Os pontos de vista expressos pelos autores dos artigos publicados nesta coluna poderão não ser subscritos na íntegra pela totalidade dos membros da Oficina da Liberdade e não refletem necessariamente uma posição da Oficina da Liberdade sobre os temas tratados. Apesar de terem uma maneira comum de ver o Estado, que querem pequeno, e o mundo, que querem livre, os membros da Oficina da Liberdade e os seus autores convidados nem sempre concordam, porém, na melhor forma de lá chegar.