Serei sempre uma apaixonada pelas cores de outono e pelos tons inimitáveis e plurais que a natureza veste nesta altura do ano em Londres. Pelo modo como as ruas de Londres se enchem subitamente de folhas e na paisagem urbana se intromete a natureza. Por essa interrupção da mão humana e pela sua restituição à mãe natureza, serei sempre grata.

E por estas ruas dos bairros de Londres que são só silêncio e vento a bramir por entre o arvoredo. Por onde o vento de outono sussurra, por onde se ouve o “wind rustling the leaves on the trees”, e na expressão inglesa ecoa ainda mais a onomatopeia, que tão bem imita a voz do vento.

Por detrás dos portões gradeados a ferro, por detrás dos muros feitos de pedra, avisto novas e mais árvores que se despem do verão  e se transmudam. Em metamorfose. Mudam-se para tons de ferrugem, amarelos mostarda ou cor do limão, e outros mais quentes de grenã, que lembram o rubro da vinha e do vinho e das suas borras. Que lembram a groselha ou a romã.

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Por detrás das grades pretas que separam o espaço público do privado deixa de haver  barreiras entre a estrada e os quintais porque o outono as derruba, porque o outono tudo envolve e salpica no seu grande e interminável manto de cores, sons, cheiros.

Aos canais também ele desce, com a sua presença marcante e forte e nenhuma criatura o pode ignorar. Sento-me ali num banco diante da água do  canal e dos gansos e dos patos, num banco de madeira feito para a contemplação, num banco cujas costas tem inscrita a evocação de uma vida: duas datas e o resume da jornada entre ambas.

Cada banco é uma lápide funerária na forma preferida dos ingleses: em understatement, e os parques estão repletos de evocações dos que já cá não estão, mas só para quem se interesse, se abeire e queira saber. Cada banco é uma oferta que um londrino fez ao espaço público, um tributo que prestou a um ente querido, uma recordação de alguém que com a sua vida marcou outra e assim escapou à morte.

“To live in the hearts we leave behind is not to die”, li há dias no cemitério de Abney Park, um cemitério em Norte Londres.

Escolhi sentar-me neste banco que foi doado por um filho que não esqueceu a sua mãe. E o que este diz, reza assim:

“Softly the leaves of memory fall, gently, I gather and treasure them all
Unseen, unheard you are always near
So love, so missed, so very dear
I love you mummy”

O que traduzido é algo do género:

Suavemente as folhas da memória desprendem-se e, gentilmente, recolho-as e guardo-as  como um tesouro.
Invisível, inaudível tu estás sempre por perto
Tão amada, tão saudosa, tão querida.
Amo-te mamã

E enquanto ali estou cai uma folha ao meu lado. Há uma analogia entre o cair das folhas do outono e o das fichas da memória. Como a inscrição do banco lembra.

Divago. Não é por acaso que o outono é a estação da memória, dos mortos, do dia de Todos os Santos, do Remembrance Day. No segundo domingo de cada novembro, os britânicos unem-se para recordar o fim da primeira Grande Guerra e todos os que de então em diante morreram em guerras e conflitos militares.

É uma recordação do sacrifício que dizem não foi em vão, mas um contributo de cada cidadão para a conquista da liberdade. Esse o pressuposto, talvez nem sempre verdadeiro, mas assim canonizado.

Remembrance day é uma singularidade inglesa e da Commonwealth, um contraponto ao dia de Todos os Santos dos países do continente.

Em breve chegará.

A viver em Londres desde 2005