A 4 de Dezembro, o Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa sentiu a necessidade de chamar a comunicação social para uma conferência de imprensa com o objetivo de se explicar à nação sobre a sua intervenção no caso de aparente tratamento preferencial dado pelo SNS a duas crianças gémeas, na prescrição do medicamento mais caro do mundo, Zolgensma, que custou 4 milhões euros ao SNS e que podia, de acordo com os pais, minimizar a doença diagnosticada nas bebés, atrofia muscular espinhal.

Falou desde o palácio de Belém, embaraçado, numa sala branca acética, sem qualquer símbolo da Presidência da República, e onde os jornalistas nunca tinham estado. Visivelmente desconfortável, apresentou a sua versão trémula dos fatos, que foi suficiente para alguns, mas incompleta para quase todos.

Sabemos agora que a 7 de Novembro, dia da queda do governo, foi aberta por parte do Ministério Público uma investigação ao caso. Devemos ser o único país no mundo onde duas das três mais altas figuras da nação estão a ser investigadas pelo Ministério Público em simultâneo.

A situação não é bonita, não podemos olhar para o lado e normalizar os acontecimentos com o habitual encolher de ombros à portuguesa, simplesmente porque não é bom, não é normal, e por isso mesmo não pode e não deve acontecer.

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Numa perspetiva humanitária, é certo que duas crianças a lutar pela vida terão prioridade imediata num tratamento médico, seja de que natureza for, ainda para mais um tratamento vital. Só que num país onde os recursos de saúde escasseiam para todos, e que têm estado na ordem do dia precisamente pela falta de recursos humanos e materiais, parece-me simplista, para não dizer ligeiro, analisar este caso somente do ponto de vista humanitário.

Se perguntarmos a cada um dos portugueses que já viu algum tipo de dificuldade ou objeção, seja ela material ou temporal, no acesso gratuito por via do SNS a tratamentos médicos a doenças graves, seja para si próprios, para familiares ou amigos, os aparentes contornos deste caso são um autêntico murro no estômago. E pior, um murro protagonizado por uma mão cheia de figuras de governo e administração pública cujo dever maior seria o de zelar pelo regular funcionamento das instituições e pela qualidade democrática das mesmas.

Falo das intermináveis e injustas listas de espera para cirurgias, de todos os tratamentos ou apoios domiciliários a doenças graves e incapacitantes que têm ou limite de idade ou limite de verba anual por limitações orçamentais do SNS. Falo das soluções de recurso que só se encontram a peso de ouro no privado por parte de quem não tem seguro de saúde.

Falo de todos os crowdfundings que nos chegam diariamente pela comunicação social, pelas redes sociais, por telefonemas e emails de amigos. Pedidos desesperados de famílias que pedem ajuda financeira para compra de medicamentos, realização de tratamentos médicos em Portugal ou no estrangeiro, compra de equipamentos de apoio essenciais ao bem-estar dos doentes, pedidos desesperados para ajudar pessoas que sofrem.

No corrupio de informação que nos chega diariamente por parte da comunicação social sobre este caso, e a ser tudo verdade, não gostaria de ver confirmado que alguém passou à frente na fila de acesso a um tratamento de saúde vital. Esse é o ponto de tudo isto.

E se valeu mesmo tudo: acesso recorde à nacionalidade portuguesa, endereçamento do caso ao mais alto nível depois de uma primeira recusa de tratamento por parte do Hospital Dona Estefânia, emails a circular em cascata desde a Presidência da República, passando pelo gabinete do Primeiro-Ministro, Ministra da Saúde, Secretaria-Geral da Saúde, e a acabar no Diretor Clínico do Hospital de Santa Maria, uma carta de denúncia dos médicos que miraculosamente desapareceu dos registos do hospital. Sendo tudo isto verdade, quem nos protege dos atropelos e da falta de democracia? Se até o ex-ministro Correia de Campos assumiu recentemente numa entrevista que tinha um assessor só para “cunhas”? Como assim um assessor para cunhas e pago por todos nós que não temos cunhas?

Os partidos políticos têm optado por ser algo contidos nos comentários, numa consciente procura de estabilidade dada a peculiar e frágil situação atual dos dois órgãos de soberania: Presidência e Governo da República. Vão agindo de acordo com o que se vai sabendo e a meu ver bem, pedindo explicações até que se esclareçam os factos. A Iniciativa Liberal, que apresentou em Maio o Sua Saúde, a sua proposta de uma nova lei de bases da Saúde, e que tem acompanhado de perto o dia a dia dos utentes do SNS e assistido à degradação do mesmo in loco, tem agora liderado os pedidos de esclarecimentos aos vários intervenientes no seu habitual pragmatismo para que tudo isto não caia em esquecimento.

Não sabemos o que o futuro nos reserva no que a este caso diz respeito, não podemos fazer ideia de qual variedade mais ainda vamos descobrir neste teatro absurdo, mas depois dos 75.800 euros em notas encontrados em Novembro na sala do chefe de gabinete do primeiro-ministro, Vitor Escária, ou dos cerca de 200 mil euros pagos em salários pela empresa Start Campus por 6 horas semanais de serviços ao best friend forever do primeiro-ministro, Lacerda Machado, para aparentemente influenciar ativamente decisões do governo afetas à execução do data center de Sines, tenho algum receio do que ainda possa aí vir.

Por enquanto sabemos de viva-voz, nas palavras da própria mãe das crianças gémeas, que usou “o pistolão”. Penso que todos gostaríamos que deixasse claro de quantas balas precisou. Porque o tratamento, esse é certo que já foi dado e as crianças até já não estão em Portugal, tendo voltado para o seu país de origem pouco tempo depois. Curiosamente, também não precisaram de levantar o segundo par de cadeiras de rodas que tanta falta fazem a outros doentes que padecem da mesma doença e que viram as mesmas serem recusadas por falta de verba.

O que gostava mesmo era que nada disto tivesse acontecido realmente e que num país ideal e justo simplesmente não houvesse hipótese de acontecer, que a nossa pequena democracia fosse democrática de verdade. Que alguém, na lista de nomes do organigrama do Ministério da Saúde cujo envolvimento tem vindo a público, tivesse dado um murro na mesa e dissesse aos, com toda a certeza, desesperados pais, “vamos analisar claro, mas terão de aguardar a vossa vez”.

Entretanto, a auditoria interna do Hospital de Santa Maria concluiu no passado dia 13 de Dezembro que a lei foi cumprida em todo o processo “exceto na referenciação para a consulta de especialidade de neuro pediatria” de dois doentes, e que a mesma teve indicação da Secretaria de Estado da Saúde por telefone, para marcação da primeira consulta desta especialidade. Aguardemos agora pela investigação do Ministério Público.

Quero mesmo muito acreditar que a decisão de administrar tão excecional medicamento tenha sido meramente clínica e qualquer outro motivo não possa simplesmente ter sido tido em conta, tal como disse Manuel Pizarro, ainda Ministro da Saúde.

Mas se o pior dos cenários se confirmar, espero um pedido de desculpas públicas dos responsáveis pelo monumental bypass ao próprio SNS, seus profissionais e utentes, no fundo um bypass ao país.

Porque na melhor versão possível dos acontecimentos estaremos sempre perante um gritante insulto aos portugueses que sofrem de doenças graves, mas também um insulto aos seus familiares e amigos que por sua conta e risco amparam e minimizam o sofrimento dos doentes. O estado social que o socialismo tanto apregoa e que lhe tem dado tantos votos é afinal um embuste e de nada nos vale, porque no modelo que atualmente vigora simplesmente não chega e nunca vai chegar para todos.

É caso para dizer: com a Saúde não se brinca, e com os portugueses também não.