Desde Julho de 2021 que não sabemos nada sobre a situação de crianças e jovens considerados em perigo, tenham sido recebidos por famílias de acolhimento ou estejam em instituições, como medida de protecção. Nas empresas privadas rolam cabeças pelo atraso no reportar, na administração do país é quando se pode, a transparência que espere. Segundo o último Relatório CASA do Instituto de Segurança Social, eram 6.706 as crianças e jovens abrangidos pelo sistema em 2019, das quais 2.022 tinham dado entrada nesse ano. Estranhamente, pelo menos para leigos que acreditam que o sistema não deixou de funcionar, esse último relatório acreditava que o primeiro ano de pandemia tinha reduzido as novas integrações.

A crise económica irá atingir também as famílias de acolhimento desses menores, que não sabemos que idade têm hoje e onde estão, reconhecida a grande mobilidade no seu fluxo. Esperemos que a governação saiba deles. Que apoios estão pensados para que a pobreza não deite ao chão os continuados esforços em reduzir a institucionalização, medonha em tantos sentidos ? Como evitar que os números do acolhimento em ambiente familiar não decresça e conheça uma inversão na sua tendência de crescimento?

Na semana passada pareceu-me ver o Manel, num homem que se atravessou à minha frente, numa mercearia da Várzea de Colares que vendia caro os divinos produtos da região, e que refinou nos últimos anos, pelas mãos de uma nora dos proprietários, ucraniana. O que eu gostava de saber do Manel. Nem que fosse por imagem recolhida por drone, tão abusiva como a minha escrita, ver-lhe os passos e descobrir o que conseguiu fazer com tanta adversidade e perfídia, espiar-lhe as eventuais glórias sobre o mau destino. Ainda terá nele as marcas que o tornavam capaz de merecer a condescendência das enfermeiras, tornadas família de acolhimento ?

Entre nós – as raparigas com 16 anos que a Irmã Rosa do Carmo arrebanhara no colégio Sagrado Coração de Maria e que fariam parte da primeira vaga de voluntárias no Hospital D. Estefânia  – sussurrava-se que o Manel tinha uma mãe alcoólica, que o prendia e atirava contra a parede,  apagando cigarros no seu corpo. Mas não o sei ao certo, não cheguei a ler à socapa a ficha clínica, normalmente pendurada aos pés das camas. Mas sem dúvida que foi a primeira criança em risco que conheci, outras se seguiriam – os indicadores de como um país lida com a infância vulnerável diz-nos muito de si, mas a suspensão que sentimos ao estar perante uma criança sem porto de abrigo não nos larga.

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 O Manel era feito de um tronco castanho, martelado, nariz de cano largo, magreza baixa que coxeava, cicatrizes de sucessivas cirurgias nas pernas. Tudo preso nuns olhos vigilantes. Esquecido pela família, tornara-se o velho e respeitável habitante do hospital, por incontáveis meses que se tinham  tornado anos,  entre as malhas largas de um sistema de protecção que a Revolução de 74 questionara e que entrara em complexas transformações, em que tudo parecia possível. Em 1978 ainda não tinha sido alterado o regime de visitas dos pais, que esperavam sentados no corredor, abrindo-se a porta durante pouco mais de duas horas, em dois horários – o que deixava as crianças sozinhas grande parte do tempo e tornava tão importante a nossa presença.

O  Manel era o residente e  tomara vantagens, como a de circular entre serviços e pisos, e a de ameaçar sem consequências os mais pequenos, desnorteados com a doença e a falta dos pais. Na enfermaria que eu tinha escolhido, a de Hematologia, eram frequentes os internamentos prolongados. Às quartas feiras lá ia eu. Rapidamente percebi que as enfermeiras odiavam a desestabilização da minha pessoa, as brincadeiras ruidosas e os abraços que tiravam tudo do lugar. Cantava-se entre palmas e encontrões, a miúda do colégio de freiras era um ET lunático e inconveniente  (o que não me impedia de bater à porta da sala delas sempre que tinha alguma dúvida, o que as fazia invariavelmente levantar os olhos da revista Maria ou do que estavam metodicamente a anotar, ouvindo rádio, respondendo-me por monossílabos). Na verdade, faziam o seu trabalho.

Os miúdos que andavam a pé saltavam-me para cima, no colo cabiam dois e três de cada vez, tocarem-me parecia tónico, tremia a cadeirinha baixa onde me sentava, em constante assalto. Contava-lhes histórias e coloríamos livros, que os jogos estavam invariavelmente partidos e incompletos. Até que o Manel chegava, empurrava  os outros e ocupava-me o colo, mecanicamente, desalojando sem piedade, directo ao imaginado lugar de águas mornas que talvez já tivesse adivinhado faltar-lhe.  Inventava que um deles tinha piolhos e que o outro roubava ou que aquele não podia estar  em pé, afastava os que lhe faziam sombra,  matreiro. Na minha fecunda imaturidade o Manel trouxe-me a ideia que o abusado muito facilmente se transforma em abusador.

Um dia contou-me que planeava baptizar-se e convidou-me a ser madrinha dele. Senti-me empurrada para um noivo indesejado, não me sentia madrinha, era apenas a rapariga do colo que os outros queriam, o que não passara despercebido ao rapaz das enfermeiras que já firmara território e apavorava os outros. A pedra no sapato durou poucas semanas, acabou quando percebi que o Manel se multiplicara em convites e que  facilmente seria possível fugir ao compromisso.

Na redação de uma revista económica onde trabalhei falaram-me um dia de um jovem paquete que por lá tinha passado. Tinha estado institucionalizado, passara larga temporada hospitalizado e vivia agora com uma tia (lá está, as estatísticas falam da considerável percentagem de aparente sucesso, o retorno à família de origem). Julgava-se atraente e estava apostado em impressionar os colegas, contaram-me. Quando ouvia alguém por perto pegava no telefone e falava em inglês, avisando misteriosamente o seu interlocutor que não podia falar. É o Manel da Estefânia, disse eu.

Texto escrito segundo a antiga ortografia. Crédito fotografia António Pedro Ferreira