O tempo das Festas é pouco menos do que uma avalanche de família de origem. Um dia destes, de pé e na cozinha, ouvi-me a dizer à Margarida, num tom que pode ter parecido inquestionável aos seus sete anos: “aos chefes não se passa cartão”. E isso em resposta a um incidente no colégio, que apanhou de surpresa a despreocupada Margarida. Nesse preciso momento, dei conta do quanto esse princípio – o da aversão à subserviência e à graxa – é parte do meu legado familiar. E ao que percebi acabara de o transformar nessa pérola.

A transmissão familiar é tramada. O meu bisavô Alfredo Roque Gameiro, um mestre na aguarela que pintava marinhas como nenhum outro, não o fez por menos e eliminou margens para o esquecimento, afixando na casa da Venteira o seu lema: “Honra teus Avós”. E isso para muitos dos seus descendentes ainda soa a ameaça.

Segundo os psicólogos e psicanalistas, essa conversa na cozinha tratou de actualizar a herança familiar. É óbvio que o princípio herdado poderia ter tido outro destino, rejeitado ou recalcado iria arrumar-se em zona de congelamento – mas ainda assim isso não impediria a sua transmissão subtil, que levará a insubordinação do trisavô cineasta à Margarida. Tramado, sim. E ainda mais quando as histórias de vida de pais, avós, bisavós ou cônjugue arrastam consigo legados patrimoniais, literários e artísticos.

Vem isto a propósito da Casa de Mateus, em Vila Real de Trás-os-Montes, e do Museu de Arte Contemporânea Nadir Afonso, em Chaves.

Em Janeiro de 2022, na morte de Fernando de Sousa Botelho de Albuquerque, Teresa e Inês, as duas filhas, tomaram em mãos a continuidade da Casa de Mateus.

A família resistiu a dispersar o enorme património, primeiro através da figura do Morgadio, depois com a bengala do Fideicomisso, finalmente sob o estatuto de Fundação. Antes delas, onze gerações tiveram idêntica missão, quase irrenunciável. E onze gerações é muito, são sobressaltos descontínuos, muitos passos a dirigir e a calcorrear a monumental arquitectura barroca, que também foi mudando.

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No último ano, Teresa e Inês procuraram «sentido» e rumo para a sua missão, não se coibindo de inovar, de intensificar a ligação a círculos artísticos internacionais e de entrar em força no digital.

Andei por lá recentemente, assisti a uma performance da Associação blablaLab e a um debate. Pude ver movimento, produção, emoção e pessoas a tentar chegar a melhores resultados. E muito trabalho nos campos, nas vinhas e no jardim, quase integralmente certificados como biológicos (o pai tinha formação em engenharia química e liderava também a Lavradores de Feitoria, que reúne as uvas de 20 quintas do Douro).

Os áudio-guias favorecem a visita ao Palácio e ajudaram a reduzir o efeito da pandemia. Ainda assim, e em 2021, foram recebidos 45.943 visitantes. O site, redes sociais e newsletter mostram a permanente programação cultural e educativa (a que se acede em três idiomas).

Algumas pequenas coisas indiciam novas ideias, como os jantares, agora frequentemente vegetarianos. Lembram-nos a primeira produção de mel, os afinamentos na horta-jardim, os workshops sobre ervas aromáticas locais, realizados na contígua Quinta do Alvaredo, comprada recentemente.

A visibilidade e o emprego de Vila Real seriam outros sem a existência da Casa de Mateus, e isso não é de agora. Mais recentemente, a notoriedade foi sendo cimentada nos Festivais de Música, nos Prémios Literários, nos Seminários de Tradução Colectiva de Poesia Viva, nos apoios às artes plásticas.

Teresa, hoje Diretora-Delegada da Fundação da Casa de Mateus, pós-graduou-se em Gestão de Empresas Culturais, na Escola de Comércio de Dijon. Foi adjunta do Primeiro Ministro António Guterres e, mais tarde, de Jorge Barreto Xavier, Secretário de Estado da Cultura do governo de Pedro Passos Coelho. Neste primeiro ano de gestão da Casa, contou com a experiência de Rui Vilar e António M. Feijó, com assento na administração. E a seu lado, no dia-a-dia, está o produtor e programador José Luís Ferreira.

Não quero dizer com isto dizer que a família é a melhor gestora ou defensora de um legado, mas sim que Teresa e Inês podem ter competência para o fazer – apesar de estarem a tomar em mãos, e com consciência disso, um legado familiar. E isso, em Portugal, é mal visto e merece grande reserva, a raiar o descrédito. São tantos os casos que conheço que até evito enumerá-los. «Agora não te tornes uma viúva» disse-me um amigo, historiador, em tom protector, depois de eu ter publicado a biografia do meu avô paterno.

Haverá dias em que as filhas do Conde de Mangualde, Vila Real e Melo terão vontade de voar para outros continentes, ou para cidades animadas, imagino que sim. Mas não deixarão de inventar atalhos, de tentar ultrapassar distâncias, não dormirão sabendo que têm o site desactualizado, no que depende delas não falharão. É minha essa certeza. E se a isso se chama competência, brio ou missão no script familiar, tanto me faz.

E ali perto, Chaves. À minha frente o Museu de Arte Contemporânea Nadir Afonso, projecto belíssimo de Siza Vieira, inaugurado em 2016 com pompa e circunstância.

Impõe-se no planalto à beira-rio, elevado do chão, integrando-se na paisagem verde junto ao Tâmega. Orçado em 8 milhões de euros, financiados a 85% por fundos comunitários, o espaço foi construído para acolher e valorizar o espólio do pintor Nadir Afonso. E também para reforçar a presença da cidade na rota do Turismo Cultural, como se lê no Protocolo, apresentado no site da Câmara. Foi criado para dinamizar o activo assente no triângulo Património Romano/ Nadir Afonso/Siza Vieira. E nisso acreditou generosamente Nadir Afonso, na altura da sua morte, em 2013. E, de igual modo, presumivelmente, Siza Vieira.

Em pleno pico turístico, neste último e quente Setembro, fui conhecer o museu municipal. Encontrei um lugar fantasma, esquecido e silencioso. Logo à entrada notei a ausência de Nadir, inesperada. À minha frente, uma grande parede vazia que nada mostrava. E nem mesmo o filme, de que me tinham falado, se fazia ouvir, no hall deserto.

Nas idealizadas condições traçadas por Siza Vieira para mostrar a pintura de Nadir, na luz perfeita, encontrei uma vasta exposição temporária, a mostra de uma coleção privada. O espaço dedicado a Nadir reduzido a quase nada, uma desilusão para quem fez tantos quilómetros (por ironia viria a vê-lo em breve, noutro lugar que não o seu lugar, na exposição que reúne obras inéditas do período surrealista, na Fundação Cupertino de Miranda).

A dormência de um equipamento tão poderoso e marcante transtornou-me. Encontrei sem uso o atelier impecavelmente preparado para acolher a criação artística, inútil (não posso crer que não existam artistas em Chaves a sonhar com aquelas condições). As luzes apagadas na Biblioteca, sem esperar ninguém. O Bar montado que não funciona. O auditório, perfeito, e que tem servido para pouco mais do que reuniões partidárias e municipais, dizem-me, se bem que não encontre rasto delas em lugar nenhum. A loja deserta, onde é escusado procurar por algumas das publicações de referência ligadas a Nadir Afonso e Siza Vieira.

Inaugurado há seis anos, o museu continua sem Director – e talvez aí esteja a origem do aparente abandono, da ligeireza da programação que esquece o potencial dos meses de Verão.

Lá fora, a fila de loureiros e árvores de fruto que o projecto arquitectónico considerou, e que estão também a ser descuidados. Algumas já morreram. Da hera plantada, que devia estender-se, quase nada resta.

Já em Lisboa, consultei o site do Museu. Devia tê-lo feito antes, anteciparia o desastre. Dei de caras com um site vazio de conteúdos, e sem tradutor, o que dará imenso jeito para cativar a tal Rota de Turismo Cultural. A exposição temporária em destaque acabou em Abril de 2022. Os campos relativos à Colecção, Fundação, Arquitectura ou Actividades estão a zero. Não seria isso que António Costa imaginou quando, em visita ao equipamento realizada em Agosto de 2019, falou dele como o quilómetro zero da chamada Rota Nacional 2, que liga Chaves a Faro.

Vim depois a saber que nem mesmo a Presidente da Fundação Nadir Afonso conhece os números de visitantes ou é ouvida sobre a programação. Tem sido posta à margem, ao contrário do que estava protocolado que viesse a acontecer. Percebe-se, quem assim trata um legado pode sentir-se incomodado por Laura Afonso, que há mais de três décadas estuda e inventaria a obra do marido. Segundo me diz, ao email da Fundação chegam os comentários de quem se sente defraudado – reacções que se encontram também no Google.

Entretanto, o Facebook diz-me que o Museu recebeu uma oficina criativa, durante as férias natalícias, que juntou uma dezena de crianças. Esse quase nada é um avanço. Bastará a quem não entende o legado que lhe caiu ao colo e parece ter mais que fazer.