Num universo político e mediático alucinantemente distópico, em que o embuste propagandista já não é sequer mascarado, é tarefa cada vez mais árdua ignorar a nudez do rei. Envolve o desprezo por provas concretas, o refúgio paliativo na cartilha colectiva e a linear recusa da possibilidade de viver numa ordem fraudulenta. Não sendo a honestidade intelectual uma virtude frequente, proliferam aqueles que, arrogando-se insurgência e subversão – procurando distanciar-se assim da acefalia das massas — prosseguem sendo consciente ou inconscientemente reféns do mesmo sistema que dizem rejeitar: um fenómeno que vamos baptizar, por motivos práticos, de rebeldia obediente.

Sendo esta uma maleita que afecta indivíduos de ambos os extremos da matriz política, categorizo duas grandes espécies de rebeldes obedientes: o anticapitalista esquizofrénico e o capitalista autista. Comecemos por explorar o primeiro – que é não só mais comum, como mais flagrante.

O anticapitalista esquizofrénico considera que o sistema capitalista tornou o Estado, as Instituições e a Ciência reféns dos interesses do Grande Capital. O valor dinheiro superou-se aos restantes e trucidou-os, moldando uma sociedade hiper-materialista, alheada da sua humanidade. Contudo, simultaneamente, não parece admitir qualquer desobediência aos seus ditames.

O anticapitalista esquizofrénico não consegue entender, por muito que lhe seja explicado, que o poder estatal é o único coercivo, violento e, consequentemente, o único que ameaça verdadeiramente a liberdade. Caso, por exemplo, Albert Bourla — CEO da Pfizer — me abordasse na rua e me tentasse obrigar a ser cobaia dos seus procedimentos médicos, eu poderia exibir-lhe um pirete e seguir com o meu dia. É irrelevante quanto dinheiro tem ou qual é o poder do seu capital: eu não lhe devo absolutamente nada e muito menos obediência. No entanto, quando o Estado o fez – por via desse (ab)uso exclusivo da força – condicionou e oprimiu a vida de milhões de indivíduos por todo o mundo que optaram pela autonomia corporal. Mesmo admitindo que o Estado – detentor exclusivo da coerção – está refém das grandes corporações, o anticapitalista esquizofrénico quer combatê-las com mais Estado.

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O anticapitalista esquizofrénico deveria ter consciência – por ser essa a conclusão natural das suas premissas – de que os media corporativos não podem ter informação fidedigna, obedientes que são aos ditames das corporações gananciosas que os sustentam. Por outro lado, abraça as fábulas mediáticas – cada vez mais globalizadas e uníssonas – com uma sacralidade enternecedora, atribuindo a sua unanimidade a uma espécie de consenso social e científico e não a uma cartilha tirânica.

Além do anticapitalista esquizofrénico, categorizamos também – como referido – outra espécie de rebelde obediente: o capitalista autista. Este é, apesar de tudo, menos contraditório, pois constata os incontornáveis benefícios do mercado livre. Recusa-se, no entanto, a perceber o que deveria ser lógico: que este neocorporativismo não é livre mercado e que defender a liberdade económica dos indivíduos não significa defender os monopólios artificiais. Pior: tal como o anticapitalista esquizofrénico recusa ver malícia na actuação governamental, o capitalista autista enjeita a possibilidade de qualquer prejuízo para a sociedade advir do sistema que defende – ignora a sua adulteração e corrupção e atribui-lhe infalibilidade divina.

Ambas as categorias de rebeldes obedientes têm aversão a opiniões que, fazendo sentido lógico e sendo baseadas em dados concretos – e alguns até, pasme-se, publicamente admitidos – ameacem os seus alicerces de crença na espécie humana e na civilização. Isto constitui, em grande medida, uma aversão genuína. É um medo do escuro, uma contra-intuição, um aterrador precipício de incerteza; uma aversão entranhada no seu subconsciente e reforçada por uma incessante campanha de ostracização das posições que estão para lá do admitido pelo sistema.

Estas posições de que falo não precisam sequer de ser opinativas; pode tratar-se de simples constatações do que é facilmente perceptível fora dos círculos intelectual-virtuosos – cuja narrativa ilusionista sobrevive por controlo da imprensa e da comunicação pública e consegue, dessa forma, rotular mensagens alternativas com os piores insultos e assim criar em muita gente a repulsa subconsciente à sua adesão – mesmo que esta narrativa tenha o condão de estar sempre redondamente errada em cada um dos tópicos. Este rótulo imputado assume habitualmente duas formas, que são particularmente irónicas por ilustrarem melhor o acusador do que o acusado: a do transtorno mental (vulgo “chalupice”) e a do fascismo.

O medo do fascismo é, claro, meramente teórico, etéreo, virtuoso; não tem uma sustentação pertinente e não representa uma real preocupação com práticas estatais repressivas. Caso contrário, condenaria as práticas fascistas da União Europeia ou da administração Biden com a mesma veemência que faz do que perceciona terem sido as praticadas pelo facínora Trump. O caso do ex-presidente americano, e provável futuro, é de resto bem ilustrativo do que fenómeno que refiro. Tenho em relação a ele, pessoa e político, profundas objecções ideológicas e comportamentais. Contudo, a campanha anti-Trump instalada é emocional, irracional, alienada, rasteira e desonesta, eivada de mentiras e exageros disseminados pelos seus inimigos políticos e espalhados pelos media – uma mega-narrativa que alastra como um incêndio porque tem como gasolina a sua conduta escandalosa e facilmente odiável. É tão alheada da realidade que eu não posso em consciência fazer nada senão combatê-la. Pela verdade, não por ele. Como opto por corrigir as falsidades com que o incriminam, ao invés de juntar a minha voz à unanimidade mediática contra a figura, passo a ser também eu “um deles”, tornando assim as minhas considerações inúteis e até perigosas.

Irremediavelmente perdido nos axiomas do turbilhão propagandista, o rebelde obediente carece do desassombro da especulação – um exercício frequentemente delicado e desconfortável, mas que representa via imprescindível para chegar à verdade. E que pode ser, por isso, também profundamente satisfatório. O rebelde obediente, pusilânime e altivo, tem-lhe tenaz repulsa; e não tem problemas em imputar a quem nele engaja todo o tipo de maleitas psiquiátricas.

O rebelde obediente sabe que os seus governos são organizações criminosas e que os meios de comunicação são o seu veículo de propaganda. Porém, por cobardia, lassidão e relacionalidade, prefere assim. O problema do rebelde obediente não é estar alicerçado nos princípios errados. O seu problema é não os ter.

Nota editorial: Os pontos de vista expressos pelos autores dos artigos publicados nesta coluna poderão não ser subscritos na íntegra pela totalidade dos membros da Oficina da Liberdade e não reflectem necessariamente uma posição da Oficina da Liberdade sobre os temas tratados. Apesar de terem uma maneira comum de ver o Estado, que querem pequeno, e o mundo, que querem livre, os membros da Oficina da Liberdade e os seus autores convidados nem sempre concordam, porém, na melhor forma de lá chegar.