Muitos empregos se perderam nos últimos anos na região que em inglês é habitual designar de Rust Belt e que abrange o Nordeste, os Grandes Lagos e o Midwest americano. Aliás, a população da maioria das cidades nesta zona dos EUA teve também uma diminuição significativa.
O declínio desta região historicamente caracterizada pela predominância da indústria do ferro e aço, automóvel e extracção mineira é politicamente interessante de analisar no quadro da polarizada campanha eleitoral, sobretudo porque inclui vários dos chamados swing states, entre eles o Michigan, Ohio, Pensilvânia e Wisconsin, onde a eleição entre Kamala e Trump se irá decidir.
Quer à Esquerda, quer à Direita, muitos atribuem à ascensão meteórica da China a causa da destruição de empregos no «Cinturão da Ferrugem», como se referia no artigo da semana passada na coluna da Oficina da Liberdade, e essa é tida politicamente como razão para a suposta necessidade de implementar políticas restritivas ao comércio internacional e de protecção da indústria local. A forma como o assunto é e será tratado nos Estados Unidos, será precedente para eventuais semelhantes opções públicas na Europa.
Convém por isso recordar que a recessão e desindustrialização no Rust Belt é cíclica. Assim aconteceu, por exemplo, no início dos anos 80 do século passado, quando o «inimigo» não era a China, mas sim a ameaça da concorrência industrial do Japão. Apesar de ser uma potência económica mundial, regiões deprimidas dentro dos EUA não são novidade. Num livro autobiográfico, o agora parceiro de Trump e candidato à vice-presidência, J. D. Vance, retrata bem uma decadência semelhante à do Rust Belt nas cidades dos Apalaches, de onde é originário. Nos anos 60, bem antes da entrada da China na organização mundial de comércio, a Appalachia era vista como “um vasto ferro-velho”. Mas há realidades idênticas ao Rust Belt também noutras geografias, como nos Urais russos ou no norte de Inglaterra onde os sectores económicos tradicionais claudicaram, os ambientes sociais são semelhantes e a população se confronta igualmente com uma séria prevalência de abusos de substâncias aditivas, menor esperança de vida e famílias angustiadas.
Estas circunstâncias levaram nas últimas décadas, tanto no Rust Belt como na Appalachia, a uma intervenção significativa do Estado sob diversas formas, programas e instrumentos de apoio, sempre feita em nome da protecção das indústrias locais, da preservação do emprego, e do combate à pobreza e exclusão social. Portanto, ao contrário de algumas narrativas ideologicamente enviesadas, não se poderá afirmar que são regiões deixadas à sorte do fundamentalismo neo-liberal no mercado livre e na globalização.
Tendo este contexto em conta, será razoável considerar a hipótese de o declínio do Rust Belt e a redução do número de postos de trabalho poder não vir exactamente do acesso da China ao mercado dos EUA.
Entre 1979 e 2016 o número de postos de trabalho na indústria americana reduziu-se de 19 milhões para 12 milhões de empregos. Mas no mesmo período o emprego total nos EUA aumentou de 99 milhões para 150 milhões. Não se verificou, portanto, uma sangria de empregos para o estrangeiro, mas sim uma diferente composição da estrutura de emprego, nomeadamente com ocupação noutros e novos sectores económicos, em particular de serviços.
A indústria tem perdido empregos em todo o mundo, tendência que é acompanhada pela diminuição do peso relativo da indústria no PIB dos países desenvolvidos. Contudo, a produção industrial tem tido um crescimento sustentado assinalável. Na América a produção real cresceu 180% entre o início dos anos 70 e meados dos anos 2000 (conforme recorda Samuel Gregg), sobretudo graças à tecnologia, automação e aumento da produtividade. Neste mesmo período, porém, as cidades do Rust Belt do Midwest passaram por uma crise muito profunda, sendo que estudo de 2019 publicado pela The Econometric Society indica que o embate com a concorrência chinesa ocorrido entre 2000 e 2009, foi responsável por apenas 16% do declínio do emprego na indústria transformadora americana nessa década.
Em 2023 os EUA importaram 25,6 milhões de toneladas métricas de aço, tendo apenas 2% desta quantidade origem na China, enquanto a indústria do aço empregava apenas 0,05% da força de trabalho não-agrícola americana.
Quer isto dizer que impôr tarifas às importações de aço não só se aplicaria a uma pequena parte da procura por este tipo de material, como teria hipoteticamente efeito numa ínfima parte dos empregos americanos. Aliás, isso mesmo se verificou após Donald Trump ter aplicado essas tarifas durante a sua Presidência, de que resultou apenas preços mais elevados suportados pela esmagadora maioria da população e não num desvio da procura para a compra de bens produzidos internamente.
Entretanto, os empregos industriais dos EUA não estão a deslocar-se para a China, mas sim do Rust Belt para os estados do chamado Sunbelt, como o Nevada, Arizona, Texas e Flórida, que têm forças de trabalho jovens e em crescimento, energia mais barata, impostos mais baixos, leis laborais mais flexíveis e proximidade a parceiros comerciais, especialmente o México. Isto, apesar de o Texas, por exemplo, ter um nível salarial de operários fabris dos mais elevados do país.
Por outro lado, um estudo da Brookings sobre o Nordeste e o Midwest sugere que em 1970, dos 185 condados identificados como tendo uma quota desproporcional de empregos na indústria, 115 conseguiram com sucesso passar até 2016 a base da sua economia para um foco em actividades não industriais. Dos outros 70 condados, 40 tiveram ainda assim um forte desempenho económico.
Naturalmente, a realocação de recursos humanos não é isenta de dificuldades e até de dramas. Nem todos os que perderam o seu posto de trabalho encontraram novos empregos, e, mesmo sendo os EUA conhecidos pela sua mobilidade geográfica, a maior parte dos empregos perdidos para a automação e a importação manteve-se dentro das suas comunidades, algo especialmente notório no Rust Belt. Parte em resultado de uma especial identidade cultural e fortes laços familiares que caracterizam os territórios de operários fabris. Mas também porque muitas pessoas nestas áreas foram desincentivadas a se deslocarem em busca de novos empregos noutras paragens devido à concessão de subsídios por parte do Estado.
A evidência dos factos não ajuda à narrativa do pensamento mágico que acredita na ilusão de que tarifas comerciais mais elevadas à entrada de produto estrangeiro, nomeadamente da China, trará de volta empregos industriais ao Rust Belt, até porque a indústria transformadora depende hoje fortemente da automação.
Daí que a «Nova Direita», obcecada com a China, levante legitima, racional e prudentemente questões e preocupações sobre a preservação da segurança nacional quando se estabelecem relações comerciais com actores de Estados com interesses geostratégicos rivais, ou sobre os quais se considere haver risco potencial de se tornarem abertamente hostis. Naturalmente, o comércio livre não garante só por si a paz e segurança internacional, e a tensão EUA-China tem sido por isso regularmente invocada em suporte de políticas nacionalistas restritivas.
São óbvios e substanciais os benefícios para ambos os países com aumento das relações económicas bilaterais, mas é útil colocar em perspectiva que, por exemplo, os investimentos chineses nos EUA representaram em 2022 apenas 0,5% do influxo total de IDE ou que apenas entre 1% e 3% da produção americana da indústria do aço, preponderante no Rust Belt, é usado nos sectores da defesa e armamento. Ainda assim, e apesar de a maior parte da quantidade importada de aço ser oriunda de países amigos e aliados, Trump impôs em 2018 a tarifa de 25% às importações deste material, tendo sobretudo em vista deter a assim percepcionada ameaça chinesa.
A China é, pois, um espantalho largamente exagerado para justificar políticas nacionalistas e neo-mercantilistas que responde de forma populista a exigências de sindicatos poderosos, mas também facilita a captura legislativa por interesses corporativos rentistas.
O proteccionismo comercial e a “reindustrialização” centralmente desenhada pelo Estado são contraproducentes porque desincentivam o progresso tecnológico, impedem melhorias de produtividade, criam desequilíbrios na alocação de recursos e travam o crescimento económico que, em última instância, coloca em risco a própria segurança nacional, já que esta depende de haver suficientes recursos disponíveis para a defesa.
As democracias devem habituar-se a lidar com transformações económicas sem simplificar um mundo demasiado complexo identificando um inimigo externo, neste caso a China, como origem de todos os desafios sociais e, sobretudo, sem promover atitudes políticas tendencialmente favoráveis à autarcia que trazem profundas e persistentes consequências negativas à economia, afectando principalmente os menos afortunados.
Se é certo que o socialismo empobrece, é triste verificar que nos últimos tempos as forças políticas de Direita nos EUA, na Europa e em particular em Portugal se têm esquecido de verdades económicas básicas e infletido numa deriva populista estatista.
Ainda assim, se votasse nas eleições americanas de Novembro próximo, entre Kamala e Trump a minha opção seria a mesma que a do José Meireles Graça.
Nota editorial: Os pontos de vista expressos pelos autores dos artigos publicados nesta coluna poderão não ser subscritos na íntegra pela totalidade dos membros da Oficina da Liberdade e não refletem necessariamente uma posição da Oficina da Liberdade sobre os temas tratados. Apesar de terem uma maneira comum de ver o Estado, que querem pequeno, e o mundo, que querem livre, os membros da Oficina da Liberdade e os seus autores convidados nem sempre concordam, porém, na melhor forma de lá chegar.