Para o improvável caso de alguém estar a ler isto porque julga que vai aprender a ser rico, deixo o mesmo aviso que dava o professor César das Neves, na primeira aula de Introdução à Economia: “Aqui ninguém vai aprender a ser rico, se querem ser ricos comprem um táxi ou abram um restaurante”. Em tempos de Uber e Covid-19, serve também de aviso sobre como os conselhos esbarram inexoravelmente contra a incerteza inextinguível que enfrentam os projectos humanos.

A epítome mais popular sobre a prosperidade humana é o improvável êxito de Robinson Crusoé, que sobreviveu 20 anos numa ilha deserta. Isto, até os cânones da intelectualidade puritana actual desdenharem o romance por ter um herói homem, branco, cristão e esclavagista. A história em si é ficção, mas baseada em inúmeros relatos de sobrevivência na adversidade de náufragos ou, mais frequentemente, marinheiros abandonados. O segredo da prosperidade está presente em todo o momento: é o resultado de Robinson empregar uma judiciosa utilização dos escassos meios disponíveis para obter os fins desejados. A narrativa explica como, recombinando os elementos à sua disposição ao longo do tempo, o náufrago conseguiu melhorar a sua situação subjectiva em relação ao estado inicial em que se encontrava ao chegar à ilha. Lavoiser disse que “nada se cria, tudo se transforma”, só que, ao contrário do que sucede em química, em economia a transformação cria (ou destrói) valor.

O sucesso literário da obra de Daniel Defoe também radica do contraste com a vida em sociedade. Gerações de leitores compararam a desventura do náufrago com o mundo que habitavam. É verdade que Robinson usufrui de uma liberdade invejável na ilha: com a excepção dos canibais (Sexta-Feira incluído), os seus planos individuais não precisam enfrentar ou coordenar-se com os dos outros. No entanto, e apesar de o estilo de vida na ilha deserta poder atrair ascetas e anacoretas, a verdade é que, no momento em que surgiu a oportunidade, Crusoé escolheu agir para voltar à civilização. Prefere o regresso a um mundo semelhante ao que experimenta o leitor quando fecha o livro. Esse é um argumento poderoso a favor da vida em sociedade, mesmo quando o segredo da prosperidade se revele com maior nitidez na ilha deserta. A relação entre fins e meios mantém-se: por muito que tenha prosperado em relação às condições iniciais, Crusoé acredita, razoavelmente, que será mais feliz vivendo em sociedade.

Existirão dois principais motivos para tal: por um lado, discerne os benefícios de ser parte de uma ordem onde impera a divisão do trabalho e do conhecimento e, por outro, reconhece que o nível de incerteza para os seus planos é bastante menor que aquele que enfrenta na ilha deserta. Apesar da desvantagem óbvia de ter que passar a coordenar os seus planos com os das outras pessoas, Robinson percebe não só que vai poder usufruir do resultado do conhecimento dos demais, como também que o seu próprio conhecimento vai ser mais valorizado. Em suma, que necessitará empregar menos meios para lograr os mesmos ou mais fins. Uma sociedade que permite a expansão da divisão do conhecimento e possui instituições que reduzem a incerteza está no caminho de ser uma sociedade mais próspera para todos, porque se coordena de forma a que mais indivíduos realizem mais fins, com iguais meios e menor incerteza.

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Esta separação entre expansão da especialização do conhecimento e redução institucional da incerteza é uma desagregação algo artificial do que sucede na realidade. A capacidade de abstracção da mente humana permite-nos distinguir os dois processos. No entanto, não só o conhecimento em si mesmo reduz a incerteza: algo que é perfeitamente perceptível quando se fala, por exemplo, de conhecimento científico (mas que não se cinge a este); como as instituições são fruto da ordem espontânea que emerge e evolui com a expansão da especialização do conhecimento: algo que se pressente, por exemplo, quando se pensa na linguagem e em como esta se vai modificando e alargando em léxico para acomodar (e estimular) novas ideias, conceitos e situações.

É exactamente porque estas duas facetas do segredo da prosperidade não podem ser verdadeiramente separadas, que o intervencionismo estatal falha estrepitosamente, quando pretende liderar o processo de enriquecimento geral da sociedade (o caso do enriquecimento particular dos próprios governantes é diferente). A legitimidade do Estado é sugerida pela sua manutenção do monopólio da violência sobre as instituições humanas. Essa utilização (ou ameaça implícita) de força é normalmente popular porque, ou bem se percebe como o esforço necessário para que as instituições funcionem (conservadores), ou bem para que estas se adaptem (reformistas). Como instituições funcionais e bem adaptadas às necessidades dos indivíduos são uma condição básica para a vida e para a prosperidade em sociedade, o Estado coloca-se, assim, num lugar central da ordem espontânea. No entanto, a ânsia de impor uma determinada ordem na sociedade através do Estado (mesmo se amplamente desejada) é um óbice a que muitos indivíduos encontrem soluções para lograr os seus fins (ou os dos outros), simplesmente porque a intermediação estatal dificulta e aborta a criação do conhecimento necessário.

Um bom exemplo do abuso dessa ânsia são os Estados socialistas. A União Soviética impôs-se como garante de uma ordem que pretendia dar a segurança aos indivíduos de poderem produzir e consumir bens e serviços, amparados por um Estado que, em teoria, garantia um emprego para todos na estrutura produtiva, acesso aos bens produzidos em condições de igualdade e protecção contra a violência particular. Só que, apesar das (supostas) melhores intenções, cedo se percebeu que, na prática, tal fim obrigava a um nível de comando sobre a sociedade que impedia que as boas ideias dos indivíduos para melhorar a sua vida, e a dos seus semelhantes, emergissem, esbarrando com a intransigência sistémica (e a violência concreta) de uma sociedade em que o Estado era, obrigatoriamente, o intermediário e o ratificador de todo o conhecimento válido. Desta forma, a União Soviética (e todos os Estados socialistas) funcionou como empecilho à expansão do conhecimento, necessária para que a sociedade em geral pudesse prosperar. E não era por falta de fomento à criação de conhecimento, como atestam inúmeros programas educativos, desde a alfabetização pioneira da totalidade da população à criação de centenas de universidades e institutos. O colapso foi inevitável quando a estrutura de produção, isto é, os recursos utilizados para transformar matérias-primas em bens de consumo, destruía valor ao invés de o criar. Quando finalmente existiu a liberdade para sair do país, começámos a ver licenciados em engenharia a trabalhar como trolhas nos estaleiros de construção civil do Ocidente. A expansão do conhecimento não se pode obter por decreto. E todo o esforço, sacrifícios e custos suportados pela generalidade da população dos países socialistas alimentou uma descoordenação entre o conhecimento que se produzia e o conhecimento que era verdadeiramente necessário produzir.

Apesar da destruição económica e social em larga escala, o comunismo é não só possível, como pode até ser desejável. Ao nível mais molecular da vida em sociedade – a família – é óptimo que a distribuição de bens e a prestação de serviços se efectue sob a máxima marxista “de cada qual, segundo a sua capacidade; a cada qual segundo as suas necessidades”. Mas à medida que aumentamos a complexidade das interacções entre indivíduos, deixa de ser possível cingir as instituições a este princípio castrador da expansão do conhecimento e pleno de incerteza em grupos alargados. É por isso que, já dentro das relações tribais, começam a aparecer a gestão de recursos em propriedade comunal e um sistema de crédito baseado em favores, presentes, tributos e juramentos, que pode chegar a ser bastante complexo à medida que as sociedades se expandem. Porém, para que a sociedade coordene relações entre desconhecidos, é necessário algo mais: a troca e a propriedade privada. Só assim é possível a coordenação entre grupos alargados de indivíduos. É desta necessidade que surgem os processos de mercado e o dinheiro como meio de troca, que, quando é bom, também serve de reserva de valor e unidade de conta. E é a existência de uma unidade de conta a que vai permitir o cálculo económico em sentido estrito – ou seja, que numa teia super-complexa de relações entre milhares, ou mesmo milhões, de indivíduos, que nenhuma inteligência humana pode entender na sua plenitude (devido à própria extensão do conhecimento acumulado), se possa decidir o quê, onde e como produzir de forma eficaz e coordenada, com vista à satisfação dos fins mais urgentes dos indivíduos. Algo impossível em Cuba, na Coreia do Norte ou na União Soviética.

Isto não quer dizer que um sistema de propriedade privada e cálculo económico em dinheiro, em todas as facetas do quotidiano, dê passo a uma sociedade perfeita; pelas mesmas razões que uma família onde todas as relações fossem quantificadas em dinheiro seria disfuncional. A utilização de um cálculo monetário onde não existem as trocas livres empregando esse meio provoca distorções na avaliação da disponibilidade de meios e desejabilidade dos fins economicamente perseguidos. Contudo, tal como não é ambicionável monetizar uma economia familiar ou afectiva, também não é possível implementar um projecto político para a supressão do cálculo económico numa sociedade alargada, porque necessitaria estender laços afectivos a níveis em que os mesmos já não podem existir entre indivíduos. O resultado é a descoordenação social, a constrição do conhecimento e o aumento da incerteza.

A única forma de uma sociedade onde existe um grande número de indivíduos poder subsistir é permitindo que a propriedade privada exista e o intercâmbio dessa propriedade, entre indivíduos sem qualquer relação afectiva, se efectue em dinheiro e num processo de mercado, baseado no cálculo económico (de lucros e prejuízos). Qualquer projecto político para expandir o nível de prosperidade, que pretenda reverter a sociedade a instituições primitivas, como as que regem as famílias e as tribos, está condenado ao fracasso. Aquelas pessoas que, de alguma forma, simpatizam com a regressão civilizacional, aquelas que condenam a marca que os seres humanos imprimem no planeta, aquelas que aspiram por um retorno ao Heimat da sua imaginação, se não são sociopatas, estão convencidas de que se pode manter o nível de conforto e segurança de que actualmente disfrutam sem condenar multidões à escravidão ou ao extermínio. Não percebem que a coordenação de milhões de indivíduos numa sociedade civilizada é resultado de uma extensa especialização e divisão do conhecimento, que começa a desaparecer no momento em que consigam levar as suas ideias avante. O segredo da prosperidade não é ter um bolo e comê-lo ao mesmo tempo.